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CRÍTICA - "O PUB THE OLD OAK"


Quando se fala no cinema de Ken Loach, nunca nos esquecemos de mencionar a política, de o reconhecer como um "cineasta de combate político". Tecnicamente, tudo correto, as crenças de Loach, a sua consciência do que é "certo" e "errado", "justo" e "injusto", são indissociáveis das histórias que decide contar e, naturalmente, da maneira como as conta. Afinal, já dizia Manoel de Oliveira que filmar implica assumir, simultaneamente, uma posição estética e ética.

No entanto, nunca parece correto "reduzir" Loach à condição de "homem da esquerda". Ele assumi-la-ia, mas, o que salta à vista no seu trabalho, mais que qualquer vontade de disseminar algum tipo de pensamento, político ou não, é o seu humanismo militante, a vontade, ou melhor, a necessidade de fazer cinema à medida do homem comum, capaz de dar conta do seu quotidiano, com uma empatia que aparenta não ter limites. No cinema de Loach, encontramos o melhor e o pior do ser humano, mas, saímos sempre arrebatados com a sua abertura à complexidade do fator humano, estendendo a todas as suas personagens, incluindo as mais repreensíveis, algum tipo de compreensão.

"O Pub The Old Oak" quase não existiu. Aquando do lançamento de "Passámos Por Cá" ("Sorry We Missed You", no original"), Loach reformou-se. Contudo, quando Paul Laverty, amigo e colaborador de longa data, tendo escrito todos os seus filmes desde "Sweet Sixteen", de 2002, lhe apresentou o projeto, baseado numa história verídica, que Laverty investigara atentamente (na base de todas as colaborações deste duo, está sempre um meticuloso processo de pesquisa) Loach foi incapaz de dizer "não". Como o próprio tem feito questão de ressalvar, "o filme tinha de existir".


De facto, apetece dizer que poucos filmes recentes têm conseguido falar sobre o nosso "aqui e agora" como "O Pub The Old Oak". A ação decorre em Durham, um pequeno vilarejo no nordeste da Inglaterra, esquecido por todos. Em tempos a mina que empregava grande parte da população, permitiu aos locais, senão viver desafogadamente, pelo menos, levar uma vida digna. Quando a mina encerrou, o emprego praticamente desapareceu, a maioria dos estabelecimentos fecharam portas e os habitantes de Durham viram-se desamparados, o pub titular, o The Old Oak, é frequentemente mencionado como o único espaço público que resta. Um dia, o Governo envia uma camioneta cheia de refugiados sírios para ali, desencadeando uma onda de descontentamento, ancorado, por um lado, na frustração dos locais com as vidas a que se veem aprisionados, por outro, pelo preconceito latente, o medo do desconhecido, que os leva a olhar de soslaio para os refugiados, como se fossem eles os culpados pela miséria que se abateu sobre Durham.

As circunstâncias são, no mínimo, difíceis, mas, a amizade que se desenvolve entre Tommy Joe Ballantyne (Dave Turner), dono do The Old Oak, e Yara (Ebla Mari), síria que, por muitos motivos, assume um papel de liderança entre os membros daquela comunidade de refugiados, parece anunciar uma possível união. Quem sabe, um regresso ao ideal de comunidade que aquelas pessoas conheceram num passado, aparentemente, demasiado distante.

Como de costume, Loach cativa-nos, imediatamente, pela autenticidade. Aquelas pessoas, os lugares em que se movimentam, a forma como se relacionam com os outros, é uma realidade imediatamente reconhecível, com tantos pontos de contacto com a nossa, que até o mais distraído dos espetadores conseguiria, certamente, identificar ali alguma coisa a que já assistiu. Resumindo de forma necessariamente esquemática, acreditamos. Acreditamos que Durham passou por tempos difíceis, que, para Tommy Joe, o cachorrinho, Marra, representa algo que transcende as palavras, que o The Old Oak é um símbolo indissociável de Durham, ainda que, o tempo (e a situação económica do Reino Unido, em geral, e de Durham, em particular) se tenha encarregado de o tornar num pardieiro decrépito. Acima de tudo, acreditamos que todas aquelas pessoas vivem mal, com pouco dinheiro e crescentes necessidades (nem são "acessórios", são mesmo bens fundamentais que começam a faltar, como comida ou cuidados médicos), sem que se aviste uma mudança positiva no "horizonte".


Reconhecendo esse "estado das coisas", Loach assina um filme que consegue até simpatizar com os seus "vilões", isto é, os clientes regulares do pub, Vic (Chris McGlade), Garry (Jordan Louis), Charlie (Trevor Fox) e Eddy (Col Tait), que, diariamente, se sentam lá a afogar as suas mágoas em álcool e, rapidamente, se deixam consumir pelo preconceito, são retratados como personagens tridimensionais. A sua conduta é aberrante, evidenciando uma bancarrota moral meio-chocante, meio-revoltante, mas, Loach e Laverty entendem a sua situação (numa das primeiras cenas, Charlie não consegue aguentar as lágrimas e entra num pranto absoluto, com os amigos em redor, à medida que lamente a miséria em que vive com a mulher, questionando-se se algum dia a situação melhorará, nesse momento, a câmara não evidencia qualquer tipo de crítica, de ataque ou condenação, apenas empatia), o que os levou a assumir aquelas personas, a aceitar o ódio como um modo de vida, uma religião, foi um desespero permanente, alimentado por um sentimento de frustração que aumenta um bocadinho a cada dia que passa.

Possivelmente, por isso, o filme nunca os condena completamente, recusando-se a responder ao ódio com ódio e, em vez disso, providenciando uma alternativa, como aquela que Tommy Joe, Yara e Laura (Claire Rodgerson), velha amiga do protagonista, idealizam, quando surge a ideia de reavivar o espírito político do Old Oak, onde, durante as greves dos mineiros, se serviam refeições a quem não conseguia pagá-las. Portanto, como é apanágio de Loach"O Pub The Old Oak" condena do individualismo e exalta a comunidade, encarando, com um desencanto que não exclui uma réstia de esperança, uma sociedade só, onde as pessoas se congregam, não em locais como o pub titular, mas, em chats nas redes sociais que, em última instância, fazem mais para fomentar o medo ou, pelo menos, a incerteza que para providenciar companhia a quem não tem para onde (ou para quem) se virar.

É um filme extraordinariamente tocante, que nos pede que observemos, sem preconceitos, nem julgamentos, a situação de todas as suas personagens. Afinal, como é possível entender o Outro, se nem sequer nos disponibilizamos a vê-lo? A reconhecê-lo como igual? Para isso, é fundamental o trabalho de Paul Laverty, argumentista que entende as nuances, porque não, as contrariedades do ser humano e não vacila na hora de as retratar e, claro, o contributo valoroso de um elenco de atores não-profissionais, outro traço que encontramos em quase toda a filmografia de Loach, dos que preenchem os papéis secundários (e há alguns formidáveis, gente que só com o olhar transmite um sentimento de mágoa de quem foi deixado para trás pelo mundo), a Ebla Mari, que faz jus a uma personagem a que apetece chamar "maior do que a vida", alguém que tem, simultaneamente, de lidar com um passado traumático, fantasmático até, e de se assumir como um pilar para aquela comunidade de migrantes, num local distante, desconhecido e, consequentemente, intimidante, sem esquecer Dave Turner, tremendo como Tommy Joe. Numa performance que, por várias vezes, o coloca a repetir ideias que são transversais à filmografia de Loach (como o homem que tem vergonha da sua condição, de não ser melhor, não ser quem ambicionava ser), Turner não falha uma nota. A certo ponto, ele senta-se à mesa com Yara e conta-lhe uma história, num mundo justo, só por essa sequência, uma nomeação ao Óscar seria uma inevitabilidade.

Loach tem indicado que este é o seu adeus ao cinema e, se assim for, o mestre britânico sai pela porta grande, com um filme que resume todo o apelo, melhor, toda a força do seu trabalho. "O Pub The Old Oak" é um retrato vital dos tempos que vivemos, que comove quase instantaneamente (pela autenticidade, pela empatia, etc.), vão vê-lo, de preferência, depressa, a vossa alma, certamente, agradecerá.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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