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CRÍTICA - "O MESTRE JARDINEIRO"

Quem conhecer o cinema de Paul Schrader, certamente, reconhecerá nele um "autor obsessivo". Pleonasmo? Quiçá, no entanto, Schrader é mesmo um caso à parte. Em 2017, saído de um punhado de insucessos financeiros que, de alguma forma, o colocaram numa posição enfraquecida, pelo menos, no seio da indústria, Schrader abandonou as pequenas "experiências" em que andava a trabalhar (nomeadamente, títulos como "The Canyons" ou "Dog Eat Dog", onde trazia à série B, de raíz "trashy", um certo travo autoral, com resultados tremendamente interessantes, que, infelizmente, passaram ao lado de quase toda a gente) e montou um projeto que tinha qualquer coisa de culminar de carreira, chamava-se "No Coração da Escuridão""First Reformed" no original. Nele, aplicava os códigos, ou melhor, os mandamentos do chamado "Estilo Transcendental", por ele teorizado (além de argumentista e cineasta, Schrader é também um dos mais importantes intelectuais do cinema contemporâneo) e imortalizado no livro "O Estilo Transcendental no Cinema - Ozu, Bresson, Dreyer" (disponível em edição portuguesa: Edições 70, 2023), a uma narrativa que tinha muito de si mesmo, enquanto criador e indivíduo.

Havia um homem, o Padre Toller (Ethan Hawke), assombrado por fantasmas interiores que o consumiam lentamente, que estabelecia uma rotina severa e austera, que nunca se permitia quebrar, para escapar aos seus males existenciais. "Taxi Driver", realização de Scorsese, argumento de Schrader, vinha, inevitavelmente, à cabeça. Foi o início de uma trilogia, batizada "Man In A Room Trilogy", seguindo-se "The Card Counter" e, agora, "O Mestre Jardineiro", que, tudo indica, será a penúltima longa-metragem de Schrader.

Nele, conhecemos Narvel Roth (Joel Edgerton), um homem em tudo similar a William Tell (Oscar Isaac), o protagonista de "The Card Counter", um antigo membro de uma milícia de supremacistas brancos que, no passado, derramou muito sangue. Entretanto, Narvel "removeu-se" desse universo, denunciou os seus comparsas à polícia, entrou no programa de proteção de testemunhas e reinventou-se como jardineiro, cuidando dos terrenos da Sra. Norma Haverhill (Sigourney Weaver), uma viúva rica, com quem desenvolveu uma conexão, digamos, "peculiar". Um dia, a patroa impõe-lhe uma aprendiz, Maya (Quintessa Swindell), a sua sobrinha-neta, cuja presença destabiliza o quotidiano que Narvel construiu, meticulosamente, para (se controlar/castigar a) si mesmo.

Se Toller lidava com um mal "abstrato" (pelo menos, inicialmente, quando a incapacidade de reacender a chama da sua própria fé era o maior problema que tinha em mãos) e Tell necessitava de se reconciliar com as memórias de um passado violento, como torturador em Abu Ghraib, a situação de Roth é, substancialmente, mais complexa, quanto mais não seja, porque os seus pecados se encontram, literalmente, inscritos no seu corpo. Aliás, podemos mesmo argumentar que as suas tatuagens, incluindo, por exemplo, múltiplas suásticas, são uma forma de escrita, uma outra confissão, que ele dará a ler às duas mulheres que pontuam o seu destino, Norma e Maya. Nesse processo, é fundamental reconhecer o trabalho dos atores, que tão bem abraçam a prosa de Schrader, introspetiva e melancólica, sem menosprezar a possibilidade do humor.

Edgerton é formidável na hora de dar corpo a Narvel, que, naturalmente, começa o filme sentado à mesa, a escrever (um homem só no seu quarto...), inventariando vários modelos de arranjo dos jardins, estabelecendo uma utopia íntima ("a jardinagem é uma crença no futuro, uma crença de que as coisas acontecerão de acordo com o que foi planeado", diz ele), que assume, claro está, um corte completo, absoluto e irreversível com a sociedade em redor, enquanto Weaver, assume um tom quase intimidante, abraçando a crueldade da sua personagem gélida, ao que parece, amoral, contrabalançada, lindamente, por Quintessa Swindell, personificando o poder redentor do amor.

Quase tudo em "O Mestre Jardineiro" parece um eco dos filmes que o precederam, sem que isso o diminua, pelo contrário, através destes três filmes, Schrader formulou um discurso muito coerente acerca da América contemporânea ("No Coração da Escuridão" explorava, simultaneamente, a mercantilização da fé e o aparecimento de um sentimento de pânico generalizado, ligado às alterações climáticas, "Card Counter" exorcizava os fantasmas da Guerra ao Terror, aqui, tudo nos encaminha para os conflitos raciais, que dominam as manchetes norte-americanas, pelo menos, desde que George Floyd foi assassinado, em 2020), com um olhar ambíguo, porque o seu humanismo se encontra, umbilicalmente, ligado a um desencanto inescapável, pontuado por um sentido de humor impossível de caracterizar (os momentos humorísticos de "O Mestre Jardineiro" são, possivelmente, os mais provocadores da carreira de Schrader desde "Blue Collar").

É grande, grandíssimo cinema, de um dos autores que mais nos satisfaz reencontrar, aqui, reafirmando-se como mais espiritual dos cineastas atuais. Não no sentido simplista de professar uma religião, mesmo se ele é o primeiro a reconhecer que as suas raízes calvinistas marcam toda a sua existência. Antes, como detentor de uma visão em que, mesmo nas convulsões mais violentas das suas histórias, há uma parte de sagrado que persiste, algures, no labirinto do mundo.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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