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Crítica: "O Sacrifício de um Cervo Sagrado" ("The Killing of a Sacred Deer"), de Yorgos Lanthimos


O cinema de Yorgos Lanthimos permanece igual a si mesmo. Perturbador, clínico na sua frieza e desconfortavelmente hilariante. E, este conto moral, situado numa zona suburbana dos Estados Unidos, onde tudo aparenta ser idílico, pode mesmo ser a sua experiência mais arrepiante. Em causa, está um cirurgião cardíaco (uma estonteante performance de Colin Farrel), com mãos lindíssimas (não somos nós quem diz, são as restantes personagens), uma mulher imperscrutável e dois filhos “fofos” (Nicole Kidman, Raffey Cassidy e Sunny Suljic, respetivamente), cuja vida é lentamente arruinada por um estranho adolescente (Barry Keoghan), depois de o primeiro cometer um ato pecaminoso contra o segundo. Lanthimos nunca tinha evidenciado indícios de contenção, no que às componentes mais chocantes das suas narrativas diz respeito e, não será aqui que começa a fazê-lo. Aliás, no seu infindável negrume, “O Sacrifício” quase pode ser encarado como uma resposta ao luminoso e romântico filme anterior do idiossincrático autor (“A Lagosta”). Neste universo, livremente inspirado na tragédia de Ifigénia e do seu pai Agamémnon, não temos finais felizes, nem saídas limpas. Apenas, mais um olhar severo sobre as vertentes mais aberrantes do comportamento humano, tendo como base a aniquilação dum clã burguês, por um estranho que encapsula em si os germes nocivos da anarquia. Tudo se resume a um imenso “teatro” de ilusões e enigmas, com toques de Stanley Kubrick e breves apontamentos humorísticos, que vêm demonstrar as tendências mais invulgares, de um cineasta que admitira em Cannes, não saber fazer “filmes normais”. Ora, será mesmo caso para dizer, ainda bem, porque ser “lanthimizado” continua a ser dos nossos maiores prazeres terrenos.


Realização: Yorgos Lanthimos
Género: Drama, Terror
Género: 121 minutos

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