"Suspiria", de Luca Guadagnino
Aquando da passagem de “Suspiria” (2018) pelo Festival de Veneza, Luca Guadagnino autodescreveu-se como “a stalker of master filmmakers”, e aproveitou a ocasião para partilhar um caricato episódio da sua adolescência, que comprovaria esse mesmo título. Quando tinha apenas 14 anos, viu “Suspiria” (1977) em Palermo, e abandonou a projeção em estado de êxtase. Nos dias que se seguiram, falou incessantemente do filme em causa a todas as pessoas com quem se cruzava, até que um conhecido lhe segredou que o seu autor, Dario Argento, costumava almoçar num restaurante relativamente próximo. O resultado? Pois bem, Guadagnino, nem sequer dedicou uns meros segundos a pensar acerca do assunto, preferindo limitar-se a correr em direção ao estabelecimento, e encostar a sua face ao vidro, para contemplar o seu ídolo enquanto comia.
Porventura, parecerá anedótico (convenhamos, tem a sua piada), no entanto, a génese do pensamento do italiano como cineasta encerra-se nessas linhas. Como assim? Bom, acontece que, Guadagnino é também um cinéfilo assumido, apaixonado e obsessivo, que (à semelhança de contemporâneos como Quentin Tarantino ou Todd Haynes) encontra na memória uma matéria de inesgotável reflexão e reinvenção, procurando sempre desenvolver linguagens só suas, a partir do imaginário que lhe foi transmitido pelos autores que tanto admira. Nomes como Argento, Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni (1912-2007) ou Manoel de Oliveira (1908-2015). Mas, enquanto no passado, essas referências não passavam disso, em “Suspiria” (2018) assumem outros contornos.
Isto é, depois da aclamação universal e sucesso financeiro do antecessor “Chama-me Pelo Teu Nome” (2017), lhe ter providenciado alguma atenção mediática, vemo-lo literalmente a penetrar no universo de um dos mais importantes momentos da história do cinema (de terror ou não). Contudo, ao italiano não lhe interessa somente encenar o conto que já conhecíamos, preferindo conceber uma experiência onírica e lírica, profundamente enraizada em questões sociopolíticas, que eram ignoradas no filme homónimo de Argento, que se propõe a subverter todas e quaisquer expectativas que o espetador possa ir formando na sua mente. Dito de outro modo, mesmo que já tenhamos percorrido estes caminhos, nunca o fizéramos desta forma.
Durante o Outono Alemão de 1977, Susie Bannion (Dakota Johnson), uma jovem bailarina norte-americana, proveniente de uma comunidade menonita fundamentalista e repressiva, é admitida na ilustre Companhia de Dança Helena Markos, situada na Berlim Ocidental. No entanto, o quotidiano da Academia encontra-se indelevelmente marcado pelo desaparecimento de uma compatriota sua, Patricia Hingle (Chloë Grace Moretz), cujo o último paradeiro conhecido, fora o gabinete do seu psicoterapeuta, Josef Klemperer (Tilda Swinton, sob o pseudónimo Lutz Ebersdorf), onde afirmou que a instituição era dominada por bruxas, que veneram três entidades demoníacas, que antecedem o Cristianismo: Mater Lachrymarum, Mater Tenebraum e Mater Suspiriorum. Lágrimas, Escuridão e Suspiros, portanto.
Dito assim, o leitor poderá ser levado a concluir, que Guadagnino abandonou o romantismo poético e erótico, que pautava as suas obras anteriores, para nos providenciar uma antiquada odisseia satânica, contudo, o que é verdadeiramente fascinante é a maneira como a narrativa se abre ao que aparentam ser apenas detalhes: as muitas convulsões da década de 70, com a eclosão do terrorismo, as memórias tortuosas da Segunda Guerra Mundial ainda omnipresentes, e o passado da protagonista num horripilante antro de infindável opressão, que insiste em viver num odioso passado conservador, em última instância, desembocando num complexo microcosmos, onde todos os elementos se tocam e contaminam. Da milimétrica e graciosa vibração dos corpos à insidiosa e invisível presença do Mal.
Resumindo de maneira necessariamente esquemática, o que antes era um exercício de estilo, que seduzia pela sua extravagância visionaria, torna-se numa serena, melancólica e comovente parábola sobre uma nação ferida por um dilacerante sentimento de culpa, que nunca se olvida de ilustrar as consequências humanas deste tipo de movimentações sociopolíticas (veja-se o belíssimo arco de Josef, assombrado pela ausência permanente da mulher, que teme tenha sido assassinada ao tentar passar o Muro de Berlim).
Posto isto, e mesmo reconhecendo o brilhantismo exemplar da realização de Guadagnino, importará ressalvar a importância fundamental de três outros colaboradores. O compositor Thom Yorke, novamente a produzir uma sonoridade pautada por um romantismo magoado, como só ele sabe, o diretor de fotografia, Savombhu Mukdeeprom, cuja lente providencia ao todo uma tangível ambiência invernosa, e, claro está, Tilda Swinton, a “musa” do cineasta, que aqui nos impressiona com duas composições de invulgares nuances emocionais (e uma terceira, que apenas os mais atentos conseguiram desvendar).
Em conclusão, “Suspiria” (2018) nem é aconselhável a estômagos fracos (a sanguinolência é muita), nem a rabos impacientes (são 145 minutos, que exigem um espetador paciente e atento), porém, quem procurar cinema de primeiríssima linha, terá forçosamente de se submeter aos seus enigmáticos encantamentos.
Realização: Luca Guadagnino
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