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"Noites Mágicas", de Paolo Virzì


Estamos em Roma, no Verão de 1990. A Itália vai ser eliminada pela Argentina nas meias-finais do Mundial de Futebol (o único assunto que parece conseguir captar o interesse do povo) e o cinema italiano está em queda desde meados da década de 80. Porquê? Bom, os motivos são demasiados para enumerar, pelo que, digamos apenas que os efeitos da crise económica não perdoavam, a televisão comercial começava a cativar mais espetadores do que o esperado e os grandes autores da nação transalpina que ainda não tinha falecido, encontrava-se a lançar últimos trabalhos que não conseguiam granjear a euforia de outros tempos. Nanni Moretti começava a dar os seus primeiros passos e Giuseppe Tornatore tinha acabado de vencer o Óscar na categoria de Melhor Filme de Língua Estrangeira com “Cinema Paraíso”, mas não havia maneira de escapar a realidade. Era o fim da chamada “época de ouro” das películas italianas.

Foi também nesse período que Paolo Virzì começou a tentar estabelecer uma carreira como cineasta que, eventualmente, o conduziu a um certo “estrelato”. Aliás, para muitos, ele é mesmo o realizador que melhor captura o espírito desses tempos áureos. Acontece que, as suas duas últimas longas-metragens, “Loucamente” e “The Leisure Seeker”, pareciam anunciar um autor em decadência, contudo, foi aí que o mesmo se lembrou do “golpe de asa” que é “Noites Mágicas”. Uma viagem entre a melancolia e a euforia por esses tempos conturbados, que coloca em cena três aspirantes a argumentistas (Giovanni Toscano, Irene Vetere, Mauro Lamantia), que chegam à Cidade Eterna com sonhos de singrar num mundo, onde claramente não pertencem. O seu quotidiano é passado quase sempre da mesma forma, entre eventos sociais com celebridades envelhecidas apenas interessadas em proclamar a finalidade dos seus anos de glória (como dinossauros que proclamam a sua extinção em restaurantes caros) e reuniões falhadas com produtores sebosos.


A narrativa envolve ainda uma série de outros elementos, como a investigação de um enigmático homicídio (a fazer a vénia à tradição do noir italiano, atualmente completamente esquecida) ou as muitas relações amorosas (ou, na maioria dos casos, somente sexuais), que o trio de protagonistas vai experienciando, contudo, é tudo meramente alegórico, neste comovente fresco histórico, com pronunciados contornos autobiográficos ( Virzì revê-se nos dois homens no centro da história enquanto que a rapariga é inspirada na coargumentista Francesca Archibugi), que traz à mente o cinema de nomes tão dispares como Paul Thomas Anderson e David Robert Mitchell, na medida em que quase parece funcionar como dois filmes: por um lado, um olhar melancólico sobre o fim de uma era que não volta nunca, por outro, como um poema lírico acerca de um trio de sonhadores que lutam para concretizar as suas fantasias intimas, apesar de saberem que as mesmas permaneceram eternamente fora do seu alcance.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Notti Magiche"
Realização: Paolo Virzì
Argumento: Francesco Piccolo, Francesca Archibugi, Paolo Virzì
Elenco: Mauro Lamantia, Giovanni Toscano, Irene Vetere, Giancarlo Giannini, Ornella Muti, Marina Rocco, Roberto Herlitzka, Paolo Bonacelli, Andrea Roncato, Giulio Scarpati, Emanuele Salce, Giulio Berruti, Ludovica Modugno, Ferruccio Soleri, Simona Marchini
Produtores: Marco Belardi
Produtores Executivos: Valeria Licurgo
Diretor de Fotografia: Vladan Radovic
Montagem: Sara Petracca, Jacopo Quadri
Décors: Alessandro Vannucci
Guarda-Roupa: Katia Dottori
Duração: 125 minutos

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