Avançar para o conteúdo principal
"Samitério de Animais", de Kevin Kölsch, Dennis Widmyer


Em 1977, após o sucesso de Carrie e The Shining, Stephen King entrou num breve hiato para aceitar um convite da Universidade do Maine para dar aulas de escrita criativa. A seu objetivo era aproveitar a ocasião para auxiliar novos talentos e agradecer à instituição que o formou. Durante esse período, o autor e a família estabeleceram-se numa casa no meio de nenhures, situada na berma de uma estrada nacional com um trânsito extremamente perigoso. Um dia, King encontrou um terreno próximo da sua residência, onde as crianças tinham feito um cemitério para os animais que ali apareciam atropelados com alguma frequência. O local possuía campas improvisadas pelos miúdos que pareciam transmitir uma melancolia infeciosa que acabou mesmo por se apoderar da mente do escritor. Meses depois, nasceu Samitério de Animais. Um romance que dramatizava alguns dos episódios mais perturbantes que o escritor havia experienciado naqueles tempos.

No entanto, nem a mulher, nem os amigos, achavam que o livro devesse ser disponibilizado devido às muitas e chocantes parecenças com a vida da família, condenando-o a uma obscuridade que só abandonou por pressão da editora Doubleday, que o transformou num dos maiores êxitos da carreira de King, embora o mesmo continue a admitir em público e amiúde que a existência do mesmo o inquieta bastante. Porquê? Acontece que, o autor sempre procurou transmitir determinados valores nas suas histórias, entre eles, a importância da perseverança e do otimismo. Afinal, o que é It senão a comovente odisseia de um septeto de jovens que aprendem que a força está na união? Ora, e seguindo essa linha de pensamento, como encarar obras tão delicadas como Os Condenados de Shawshank ou À Espera de um Milagre? Pois bem, Samitério de Animais é a negação de todos esses sentimentos esperançosos. Um conto niilista, com contornos de tragédia grega, onde a danação é uma garantia e o livre arbítrio uma ilusão infantil.


Começamos com uma viagem. Louis e Rachel Creed decidiram abandonar Boston, por razões que nunca são explicitadas (se essa vagueza é importante ou não para o desenrolar da narrativa, caberá a leitura que cada um fizer do que nos é mostrado), e levar os dois filhos para uma pequena povoação no interior do Maine, nos Estados Unidos. Estão no “coração do país” e mal podem esperar para iniciar as suas novas vidas. Contudo, estranhos acontecimentos levam o patriarca da família a descobrir um velho cemitério de animais de estimação, que outrora fora utilizado por indígenas para ressuscitar os seus falecidos, e onde ainda habitam seres malévolos que escapam à sua conceção racional da realidade…. Seguem-se muitas e sanguinolentas peripécias que acabam por expor Samitério de Animais como aquilo que realmente é: uma fábula pensativa sobre o assombramento desencadeado pela nossa consciência constante e permanente da iminência da morte como um “último destino” inescapável.

Aliás, Kevin Kölsch e Dennis Widmyer tratam de nos transportar para esse território de fábula de imediato por via de uma abertura desconcertante, na qual acompanhamos as deambulações erráticas de um plano aéreo que sobrevoa um autêntico mar de árvores, interrompido apenas pela existência de duas casas, uma delas em chamas. Não sabemos se as imagens que ocupam as nossas retinas são vislumbres do futuro ou memórias do passado, nem precisamos, afinal, os maus augúrios não têm tempo. Daí passamos para ao carro dos protagonistas que ao viajarem da cidade para o campo, demonstram intenções de fugir à suposta artificialidade dos ambientes urbanos para se conectarem com a natureza, só para encontrarem uma versão amplamente retorcida da mesma, que os seduz com promessas vãs, pensadas para se aproveitarem das fraquezas genuinamente humanas do quarteto. Mantendo o mantra cinéfilo, propomos um retorno às imortais palavras de Lars von Trier: “a natureza é o Éden de Satanás”.


Posto isto, ao abraçar sem reservas esse seu lado de fábula adulta e retorcida, o duo Kevin Kölsch e Dennis Widmyer conseguem que Samitério de Animais funcione em duas vertentes muito distintas. Por um lado, como um conto de terror densamente empolgante, possuidor de uma galeria de momentos de antologia (que não mencionaremos aqui para manter algum secretismo sobre o conteúdo da narrativa) e de um trabalho de encenação absolutamente notável, que facilmente nos transporta para aqueles lugares lúgubres graças a um ambiente verdadeiramente sinistro que nunca se dissipa. Por outro, como uma meditação serena acerca das consequências da ambição desmedida do homem e da sua luta incessante contra a perceção da morte como uma condenação iminente, que aprisiona um quarteto de personagens inocentes num jogo doentio que nunca conseguiram vencer, caso escolham manter os seus princípios morais e éticos.

Para isso, muito ajudam as composições arrepiantes de Christopher Young, a fotografia de Laurie Rose a transformar alguns momentos em verdadeiros tableau vivants e, claro está, as minuciosas composições de muitas nuances de um trio de formidáveis interpretes a corporizar a violência do calvário dilacerante que os protagonistas necessitam de viver, são eles, Jason Clarke, Amy Seimetz e John Lightgow.

Será caso para dizer, que não admira que Stephen King tivesse medo do conteúdo dos seus escritos...

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Pet Sematary"
Realização: Kevin Kölsch, Dennis Widmyer
Argumento: Matt Greenberg, Jeff Buhler
Elenco: Jason Clarke, Amy Seimetz, John Ligthgow, Jeté Laurence, Hugo Lavoie, Lucas Lavoie, Obssa Ahmed
Produtores: Lorenzo di Bonaventura, Mark Vahradian, Steven Schneider
Produtor Executivo: Mark Moran
Diretora de Fotografia: Laurie Rose
Décors: Todd Chemiawsky
Guarda-Roupa: Simonetta Mariano
Montagem: Sarah Broshar
Duração: 101 minutos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)