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"O Dia a Seguir", de James Kent


Em 2012, a australiana Cate Shortland filmou “Lore”. Um olhar melancólico sobre o quotidiano dos cinco filhos de um oficial nazi, depois da queda do Terceiro Reich, que lentamente começava a assumir contornos de reflexão acerca das cruéis heranças da Segunda Guerra Mundial. Desde então, a produção europeia (e não só) parece ter reencontrado um novo fascínio em revisitar os tempos que se seguiram ao conflito e explorar os fantasmas que continuaram a assombrar todo o continente. Exemplos disso incluem títulos como “Phoenix” (Christian Petzold, 2015) ou “Labirinto de Mentiras” (Giulio Ricciarelli, 2014). Baseado no romance homónimo da autoria de Rhidian Brook e assinado por James Kent, “O Dia a Seguir”, corresponde à mais recente entrada nesses cânones. 

Estamos em 1946, quando Rachel Morgan (Keira Knightley) chega às ruínas de Hamburgo durante o inverno rigoroso para se reunir com o marido, Lewis (Jason Clarke), um coronel britânico encarregue de coordenar a reconstrução da cidade. Está estipulado que o casal vá viver para um palacete que antes pertencera a Stephen Lubert (Alexander Skarsgård), um cidadão alemão que ali tem vivido com a filha adolescente (Flora Thiemann). Decidido a fazer algo pelo futuro da nação que está a ajudar a reerguer, Lewis conclui que o melhor seria permitir a Stephen que partilhasse a propriedade consigo e com a mulher. Contudo, o coronel encontra-se permanentemente ausente da casa devido a questões de trabalho, de certa forma providenciando tempo suficiente a Rachel e Stephen para que percebam que têm uma semelhança fundamental: ambos perderam alguém durante os bombardeamentos que se tornaram comuns na Guerra, ela o filho, ele a mulher


Sustentado por uma exemplar direção de atores, o trabalho de realização de Kent envolve dois vetores complementares: por um lado, as personagens embarcam em odisseias que as expõem à terrível tarefa de reencontrarem um lugar (físico e emocional) para reconstruir as suas vidas, por outro, o pano de fundo para tudo isso está longe de ser meramente decorativo, pretendendo evidenciar um país que a Guerra converteu num terreno quase apocalíptico, onde a violência permanece uma constante. Sem hesitar na afirmação de um muito elaborado realismo social e psicológico, enraizado na tradição britânica de autores como David Lean, “O Dia a Seguir” é mais um sinal de vida do que parece ser o novo “filme de guerra”, agora focado nas consequências e ramificações da mesma, construindo pequenos frescos históricos a partir das nuances quase sempre labirínticas dos destinos individuais.


Título Original: "The Aftermath"
Realização: James Kent
Argumento: Joe Shrapnel, Anna Waterhouse
Elenco: Keira Knightley, Alexander Skarsgård, Jason Clarke, Martin Compston, Kate Phillips, Flora Thiemann, Fionn O'Shea, Anna Katharina Schimrigk, Rosa Enskat
Produtores: Jack Arbuthnott, Malte Grunert, Ridley Scott
Produtores Executivos: Carlo Dusi, Joe Oppenheimer
Diretor de Fotografia: Franz Lustig
Montagem: Beverly Mills
Décors: Sonja Klaus
Guarda-Roupa: Bojana Nikitovic
Duração: 108 minutos

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