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"Birds of Prey (e a Fantabulástica Emancipação de uma Harley Quinn), de Cathy Yan


Porque é que sentimos tanta empatia pelos vilões? Porque é que tantas vezes deixamos que se convertam em figuras mais populares que os heróis convencionais? O que é que origina esse fascínio? Será um efeito secundário de uma sociedade emocionalmente reprimida? Afinal, celebramos quando Hannibal Lecter foge de Clarice Starling em O Silêncio dos Inocentes, explodimos de emoção ao ver Darth Vader aniquilar um pequeno exército de rebeldes no clímax diabólico de Rogue One e acabamos de eleger o Joker de Joaquin Phoenix como o herói do povo para 2019. Aliás, nos próximos dias, o palhaço mais melancólico de Gotham City, pode mesmo tornar-se no segundo antagonista na longa história do cinema a providenciar um prémio da Academia a dois atores distintos. Enfim, porventura, reconheceremos neles alguns elementos da nossa personalidade na conduta pouco recomendável de quem vive pelas suas próprias regras ou, se calhar, só gostamos de acompanhar as deambulações errantes daqueles que se salvam sempre dos muitos poderes que nos monitorizam.

Quem aprecia bastante os prazeres da imoralidade é a Harley Quinn, a ex-namorada do Joker, que Esquadrão Suicida introduziu ao mundo como uma anarca que havia dedicado a sua existência a servir os interesses do companheiro. No entanto, ela aborreceu-se de ser emocionalmente manipulada pelos caprichos de um amante abusivo que reivindicava para si os pensamentos dela e resolveu emancipar-se. Colocando-a em maus lençóis com todos aqueles que maltratou ou indispôs enquanto namorava com o príncipe do crime, e que agora, sabendo-a sem a proteção deste, a perseguem dia-e-noite. Contudo, o acontecimento que desencadeia a narrativa de Birds of Prey (e a Fantabulástica Emancipação de uma Harley Quinn) nem está diretamente relacionado com ela, mas sim com uma carteirista de pouca monta, que comete o erro de roubar um diamante ao psicótico Roman Sionis. Harley não encaixa em nenhuma definição corrente de uma boa pessoa (ela entende e aceita que lhe chamem “cabra”), mas também não é desprovida de empatia, pelo que, decide auxiliar a rapariga a escapar das garras de Sionis.


Margot Robbie brilha como Harley, encarnando a contagiante volatilidade da sua personagem com admirável savoir fare e é muito bem acompanhada por um elenco preenchido por atores carismáticos. Jurnee-Smollet Bell surpreende com uma composição de invulgares nuances emocionais, Mary Elizabeth Winstead é instantaneamente icónica no papel de uma assassina sem sentido de humor e Ella Jay Basco é uma revelação, todavia, quem rouba o filme é Ewan McGregor ao dar vida a um vilão que não se assemelha a nenhum outro. O seu Sionis é um cruzamento extraordinariamente rocambolesco entre um dandy decadente e um mafioso sádico. Se alguém visivelmente se divertiu durante a rodagem foi mesmo ele. Oriunda dos recantos mais independentes da produção norte-americana, Cathy Yan podia ensinar a alguns veteranos como estruturar uma narrativa sem precisar de sacrificar a integridade das personagens. As protagonistas recebem tempo suficiente para estabelecerem as suas personalidades sem pressas, nem artificialismos. O resultado é óbvio: quando as vemos no meio dos sanguinolentos tiroteios, não queremos que nada de mal lhes aconteça, porque o filme se deu ao trabalho de nos explicar porque é que devíamos estar interessados no seu bem-estar.

O diretor de fotografia Matthew Libatique acompanha todas as suas movimentações com estilo, num universo que parece resumir-se a um cruzamento delicado entre a corrupção pandémica de Sin City e o irrealismo cartonesco de um episódio dos Looney Tunes, não fosssem todas as personagens caracrterizas pelo guarda-roupa exuberante de Erin Benach. Aliás, exuberante era um termo que podíamos muito bem utilizar para descrever toda a experiência de assistir a Birds of Prey (e a Fantabulástica Emancipação de uma Harley Quinn). Um imponente, empolgante e delirante entretenimento pipoqueiro, que se perfila, desde já, como um dos mais impressionantes feitos dentro do seu género em muito tempo. Quem dera a Deadpool tem esta elegância e astúcia... 

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Birds of Prey (and the Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn)"
Realizadora: Cathy Yan
Argumento: Christina Hodson
Elenco: Margot Robbie, Mary Elizabeth Winstead, Jurnee Smollett-Bell, Ewan McGregor, Rosie Perez, Ella Jay Basco, Chris Messina, Ali Wong

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