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Em 2015, Osgood Perkins inspirou-se na depressão em que caiu depois do falecimento dos pais, para encenar “The Blackcoat's Daughter” (ou “February” o seu título alternativo), uma meditação sobre as consequências psicológicas da perda e as dores do crescimento, com um enquadramento satânico. Tratava-se de um filme admirável, que vinha mesmo proclamar Perkins como um nome que valia a pena acompanhar. Passados cinco anos, recebemos “Gretel & Hansel”, uma adaptação do conto dos Irmãos Grimm, que ambiciona regressar às raízes mais obscuras do mesmo, no processo, evitando os enfeites delicodoces que vieram a aligeirar estas fábulas com o passar do tempo. Assim, começamos com um pronúncio de morte e um ambiente pesado, quando Gretel rejeita a posição de escrava sexual de um nobre local e, portanto, é expulsa de casa, com Hansel, pela progenitora enlouquecida, que os ameaça a ambos com um machado (se está a pensar em reunir a família, talvez, já tenha entendido que é melhor esperar pela certamente mais queriducha “Mulan”). Pelo caminho, encontram um homem simpático que lhes recomenda que atravessam pela floresta e peçam auxilio a um grupo de madeireiros que ali reside, contudo, os dois perdem-se e acabam por ser atraídos por uma imponente barraca no meio de nenhures, onde todos os dias aparece um infindável banquete na mesa, que a envelhecida dona da casa insiste em partilhar com o duo… Perkins cria uma atmosfera opressiva que contamina cada plano, em parte devido a uma inusitada banda-sonora a meio caminho entre John Carpenter e The Haxan Cloak, e a protagonista Sophia Lilis providencia uma profundidade inesperada à figura melancólica de Gretel, mas, a componente mais interessante desta variação sobre a fábula dos Grimm é a maneira como subverte as expectativas do espetador, iniciando como uma película de terror de época, onde é possível sentir a influência de “The VVitch: A New England Folktale” e “Hagazussa: A Heathen's Curse”, que lentamente se vai converter na odisseia de emancipação de uma rapariga farta de abusos, que perde a inocência e se torna numa mulher confiante. Não há volta a dar, o brilhantismo de “The Blackcoat's Daughter” não se replica por inteiro, o que não muda que Perkins continue a ser um cineasta interessantíssimo, cujo percurso merecer ser acompanhado de perto.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Gretel & Hansel"
Realização: Osgood Perkins
Argumento: Rob Hayes
Elenco: Sophia Lillis, Samuel Leakey, Alice Krige

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