"Os Miseráveis", de Ladj Ly
6 de abril de 1993. O jovem Makomé M'Bowolé é assassinado à queima-roupa com uma bala na cabeça pelo inspetor Pascal Compain, na esquadra de Grandes-Carrières, no 18º arrondissement de Paris. O agente declara ter disparado por acidente, enquanto tentava intimidar o suspeito para obter uma confissão, pensando que a arma estava descarregada. O caso e os três dias de tumultos que se seguiram, com saques e confrontos entre jovens e forças policiais no coração da capital francesa, vão inspirar Mathieu Kassovitz a realizar o seminal O Ódio, lançado em 1995. Nele, se retrata o fenómeno da violência urbana, utilizando os enormes motins que se seguem ao violento espancamento de um adolescente por parte de um polícia. Aprisionado num limbo entre a vida e a morte, o mesmo vai tornar-se no ponto de partida para uma resposta contra os “agentes da lei” pensada por um trio de amigos: Vinz (Vincent Cassel), Said (Saïd Taghmaoui), e Hubert (Hubert Koundé). Acontece que, o primeiro encontrou uma arma e jurou assassinar um polícia, caso o rapaz sucumba aos ferimentos e faleça. Não adiantaremos mais detalhes acerca da narrativa de O Ódio, para quem não conhecer o contundente filme de Kassovitz, mas, escusado será dizer, que tudo culminará em tragédia…
Em 1994, nasce um coletivo de artistas que trabalham no campo do audiovisual, chamado Kourtrajmé. Entre os membros fundadores encontramos nomes como Toumani Sangaré, Kim Chapiron, Romain Gravas ou Ladj Ly. A finalidade era somente ajudar jovens realizadores a adquirir conhecimentos sobre o meio, contudo, com o avançar dos anos os mesmos foram acumulando os trejeitos típicos de um movimento cinematográfico similar às novas vagas do século passado. Isto, especialmente, depois de Mathieu Kassovitz os apresentar a Vincent Cassel que se tornaria no padrinho e mentor do Kourtrajmé. Infelizmente, o mercado português não pode descobrir a maioria dos seus filmes, mas, em 2019 permitiram-nos descobrir o inventivo O Mundo é Teu, distribuído num trio de salas pela NOS Audiovisuais, sem qualquer acompanhamento publicitário e, agora, a Alambique Filmes providencia-nos a hipótese de assistir ao culminar dos esforços desse coletivo: Os Miseráveis, a primeira longa-metragem de Ladj Ly, baseada numa curta da sua autoria, que nos transporta para o universo violento e caótico dos bairros suburbanos franceses. Um genuíno filme social, de um dramatismo que arrisca além de clichés sociológicos ou mediáticos, resultando num equivalente contemporâneo ao previamente mencionado O Ódio (ou, num contexto norte-americano, o Não Dês Bronca, de Spike Lee), que é um dos primeiros acontecimentos de grande relevo no panorama cinematográfico de 2020.
Para começar, importa explicar a dúvida que pode pairar na cabeça do leitor. Apesar do seu título, o filme de Ladj Ly não é a enésima adaptação do romance homónimo de Victor Hugo, mas sim uma releitura das temáticas nele apresentadas, situada no mesmo bairro, onde o escritor gaulês viveu e assinou essa sua obra-prima. Assim, vamos acompanhar Stéphane Ruiz, um polícia da Normandia, que se muda para Montfermeil, nos subúrbios de Paris, para se juntar à Brigada Anti-Crime (BAC). Na sua equipa está a dupla composta por Cris e Gwada (Alexis Manenti e Djebril Zonga, respetivamente), ambos veteranos das forças da lei, conhecidos pelos métodos bastante controversos que utilizam para lidar com a criminalidade. Em poucos dias, Stéphane vai começar a aperceber-se da enorme tensão que existe entre os habitantes daquele lugar e as autoridades. Clivagem que será agravada por um acontecimento que parece ser apenas um delito comum: uma cria de leão é roubada a um circo nómada que assentou nas imediações de Montfermeil. Inicialmente, aparenta ser um caso simples, mas cedo entendemos que as suas diferenças (raciais, religiosas, etc.) os vão dividir e não ajuda que as ações de todos os envolvidos tendam a não ser as mais adequadas… Desta forma, a estrutura do filme transfigura-se, resultando numa obra que é menos uma narrativa corriqueira e mais um relato das consequências mais ou menos constantes de um rol de decisões francamente imorais, tomadas por elementos de todas as “fações” (polícias, criminosos e outros intervenientes periféricos).
A inteligência de Ly evidencia-se imediatamente na medida como gere essa espiral como um intrincado puzzle de relações, conjugando com contagiante savoir fare uma multiplicidade de personagens sem nunca descurar nenhuma delas, nem minimizar a sua importância na globalidade do arco narrativo de Os Miseráveis. Afinal, a beleza do filme reside também na maneira como nos vai enganando, colocando sempre o foco nas personagens adultas, sem que nos apercebamos que o que interessa mesmo são mesmo as crianças que vão observando e, ocasionalmente, participando no desenrolar de eventos, naquele microcosmo onde a violência se tornou de tal modo comum que, a certo ponto, parece ter-se tornado na única maneira que aquelas pessoas têm de comunicar. Isto, especialmente, numa sociedade com o seu quê de distopia, onde cedo começamos a entender que a corrupção é de tal modo corrosiva, que as instituições que supostamente deviam existir para ajudar os outros, apenas se preocupam com os seus próprios ganhos individuais, como é o caso do presidente da câmara, mais preocupado em controlar as pessoas de quem não gosta, do que em conseguir justiça para os seus constituintes. Nessa perspetiva, há algo de muito refrescante num filme que, para abordar problemas universais, se dedica a retratar meticulosamente um universo muito específico, no processo, conseguindo compor uma tapeçaria de acontecimentos profundamente enraizados naquele bairro, mas que de tão transversal se poderia passar em qualquer outro.
Texto de Miguel Anjos
Realização: Ladj Ly
Argumento: Ladj Ly, Giordano Gederlini, Alexis Manenti
Elenco: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djebril Zonga
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