Avançar para o conteúdo principal
"O Apelo Selvagem", de Chris Sanders


O cinema americano contemporâneo perdeu interesse em certos períodos temporais que, outrora, lhe providenciaram material para incontáveis narrativas. “O Apelo Selvagem” remonta até aos tempos da frenética corrida ao ouro, para acompanhar a acidentada odisseia de um cão chamado Buck, que atravessa a nação em direção à sua última morada, começando os seus dias como o mimado cachorro de um endinheirado juiz de província e terminando num lugar que não revelaremos para não incorrer nos sempre desagradáveis spoilers. Teoricamente, muitos outros filmes já percorrem territórios similares, contudo, o que é interessante no trabalho de Chris Sanders (veterano do universo da animação que aqui se estreia aos comandos de uma longa-metragem de imagem real) é a maneira como consegue conjugar tons, sem nunca se comprometer totalmente a nenhum deles, enquanto o seu protagonista de quatro patas vai navegando entre situações, no processo, construindo uma aventura bem à moda antiga (o espírito do velho Walt Disney encontra-se bem mais presente aqui do que nos muitos remakes que o seu estúdio tem andado a encomendar), capaz de funcionar em duas dimensões paralelas. Por um lado, estamos perante um filme histórico com coragem de relatar e condenar a exploração massiva de cães, que ocorreu nos tempos da corrida ao ouro, resultando em falecimentos em massa que pouco ou nada importaram aos seus donos egoístas, que os sacrificaram em prol de uma riqueza que quase ninguém encontrou. Por outro, “O Apelo Selvagem” possui uma espiritualidade comovente, não fosse a narrativa desembocar no encontro de duas almas (Buck e o humano John Thornton) solitárias que, paradoxalmente, tudo separa e tudo une, que se apercebem da encruzilhada em que habitam. Isto é, os mundos que frequentam não correspondem aqueles a que pertencem. Nessa perspetiva, por mais específicos que sejam os acontecimentos relatados, o todo adquire as sedutoras componentes de uma parábola sobre a procura da identidade própria numa sociedade que tenta sempre oprimir quem não se encaixa na norma. Um belo filme e uma lição de vida.


Texto de Miguel Anjos

Título Original: "The Call of the Wild"
Realização: Chris Sanders
Argumento: Michael Green

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)