"O Farol", de Robert Eggers
Aquando do lançamento de Hereditário, Ari Aster mencionou o seu fascínio por O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela. Porquê? Dizia ele, que o filme lhe parecia tão insondavelmente malévolo, que conseguia mesmo encapsular em si a crueldade do mundo. “Nunca conheci o Peter Greenaway, mas suspeito que seja uma pessoa horrível”, comentava o realizador. Obviamente, Aster terminou essa observação num tom brincalhão, contudo, isso não invalida o surpreendente brilhantismo do seu raciocínio. De facto, existe uma estirpe de obras acerca das vicissitudes da existência humana que, durante um par de horas, nos sequestram e aprisionam num infindável poço de negrume, recusando-se veementemente a mostrar-nos qualquer tipo de luz. Títulos como O Homem Que Queria Saber, O Laço Branco ou Goodnight Mommy. Em 2016, o aclamadíssimo A Bruxa, ou The VVitch: A New-England Folktale, foi encarado por muitos como um desses filmes. Mas estavam erradas. A primeira longa-metragem de Robert Eggers, apesar da violência e perversidade da narrativa, era, isso sim, uma celebração de valores sociais e políticos eminentemente progressivos. Citando o Templo Satânico de Los Angeles (temos consciência que não será a entidade que melhor evidencia a nossa defesa da bonomia de A Bruxa, mas aqui têm toda a razão), tratava-se “de uma crítica a uma sociedade teocrática patriarcal e uma representação justa da pressão que coloca sobre os seus membros”.
É importante começar por A Bruxa, porque enquanto que aí Eggers se dedicava a explorar um universo feminino, para encenar a jornada de uma rapariga que tentava encontrar uma maneira de escapar às forças que a oprimiam, em O Farol, o americano convida-nos para mergulhar num mundo exclusivamente masculino, ancorado em ideais antiquados e sentimentos tóxicos. São eles Willem Dafoe e Robert Pattinson, dois faroleiros, isolados numa claustrofóbica ilha no meio do oceano. O seu quotidiano rapidamente se tornará numa luta de impulsos sombrios, suscitados pela vontade de ambos de exercerem domínio. Na construção do suspense (sempre dentro dessa disputa de influências), as personagens dedicam-se ás mais diversas tarefas punitivas, pintar paredes, remendar telhados, transportar carvão, esfregar e polir metais, servir a cisterna e, claro está, abastecer o farol titular com querosene. É, portanto, um filme sujo, fedorento e tátil, que não tem interesse nenhum em contar-nos uma história tradicional, mesmo que possamos claramente desenhar paralelos entre ele e os escritos de Herman Melville, Robert Louis Stevenson e H.P. Lovecraft. O que O Farol quer mesmo é aprisionar-nos nas mentes torturadas dos seus protagonistas. Apetece mesmo dizer que é um desses filmes malévolos de que Aster (bom amigo de Eggers, note-se) falava, não fosse um sangrento e ambíguo terceiro ato oferecer uma possibilidade de redenção (ainda que aceitá-la implique seguir um caminho de brutalidade) …
Filmado nuns belíssimos e granulares 35mm, O Farol impõe-se como uma genuína sinfonia de desconforto, pelos sons evocativos, sirenes berrantes (existem certas sonoridades que continuaram a perfurar os tímpanos do espetador muito depois do visionamento do filme), as gaivotas, a maquinaria industrial, a chuva, os trovões, as ondas, a flatulência e as ondas que atingem aquelas rochas constantemente. É uma tour de force de um cineasta em ascensão, que se evidencia capaz de nos levar até aos confins da loucura numa das experiências mais inusitadas que poderemos ter nas salas nos últimos anos. Tudo isto, ancorado num trabalho magistral de apenas dois interpretes. Robert Pattinson e Willem Dafoe. O primeiro, subtilíssimo como o jovem que procura inocentemente uma forma de recomeçar a sua vida num inferno sem retorno, que só tarde demais se aperceberá da natureza das condições em que se colocou. O segundo, arrepiante e hilariante, assumindo-se como um mestre expressionista, aqui a compor meticulosamente uma personagem a meio caminho entre um marujo sem maneiras e um Deus colérico. Raras vezes, vimos um elenco em tão perfeita simbiose com o trabalho de mise en scène. Desenganem-se os que se deixaram eludir pela presença de nomes populares à frente e atrás das câmaras, porque O Farol não é mesmo para todos os públicos, mas quem entender e apreciar a demência que Eggers quer materializar aqui, sairá enamorado.
Texto de Miguel Anjos
Título Original: “The Lighthouse”
Realização: Robert Eggers
Argumento: Robert Eggers
Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe, Valeriia Karaman
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