Costuma dizer-se que "original só o pecado"... Enfim, à semelhança de qualquer provérbio de raiz popular, podemos argumentar acerca da sua eventual validade ou falta dela, contudo, importa refletir sobre a maneira como tendemos a empregar esse naco de sabedoria popular. Afinal, tornou-se francamente comum deparar com discursos fatalistas de quem deixou de reconhecer qualquer mérito ao cinema contemporâneo, acusando-o de se limitar a tentar reanimar o passado por via de infindáveis sequelas, remakes e outras revisitações de toda a ordem (ignorando o fulgor criativo evidenciado por muitas dessas obras), no processo, esquecendo duas verdades primordiais:
- Há, sempre houve e (se o cinema sobreviver à cultura nefasta do streaming) continuarão a existir alternativas à produção dos grandes estúdios norte-americanos, quer da parte dos próprios EUA, quer dos restantes continentes, onde também se filma e, ao que parece, muito bem;
- Mais que "originalidade", continua a haver quem tenha possua um dom bem mais especial, isto é, uma maneira de olhar a condição humana de forma eminentemente pessoal, devolvendo ao público pensamentos e sentimentos, perguntas e respostas, que, em última instância, nos levam a refletir acerca da nossa própria condição.
Vejamos o caso modelar de Mia Hansen-Løve, autora de títulos belíssimos como "Um Amor de Juventude" (2011), "Éden" (2014) ou "O Que Está por Vir" (2016), que agora reencontramos em "A Ilha de Bergman", uma nova deambulação cinematográfica pelo labirinto das relações humanas, alicerçado nas experiências da Hansen-Løve, cujos filmes continuam a ter como base as convulsões da sua própria existência.
Obviamente, o cinema de Ingmar Bergman terá ocupado um lugar importante na mente de Hansen-Løve durante a conceção de todo o projeto, até porque o realizador sueco é mencionado constantemente, quer pelos protagonistas, quer pelos habitantes da ilha que se evidencia como um pequeno polo de turismo cinéfilo, vivendo maioritariamente de cinéfilos que para lá viagem num regime de quase peregrinação. No entanto, "A Ilha de Bergman" é tudo menos uma mera homenagem. Nele, reconhecemos o espírito inquisitivo que pautava todos os filmes do mestre, bem como aquela capacidade inata de dissecar as muitas atribulações das relações humanas sem necessitar de recorrer a truques ou sentimentalismos, mas já conseguíamos encontrar todas essas qualidades nas fitas anteriores de Mia Hansen-Løve, que não sendo necessariamente uma herdeira de Bergman (o seu trabalho anda mais próximo do de conterrâneos seus como Éric Rohmer ou André Techiné), representa uma mesma tradição de cinema contemplativo e reflexivo.
Aliás, "A Ilha de Bergman" não faz outra coisa, senão dar-nos pistas para que possamos decifrar os muitos mistérios das suas personagens, à medida que as mesmas vão saltitando de momento em momento, emoção em emoção. Não se trata de uma narrativa corriqueira e linear, especialmente, devido à maneira como, a certo ponto, a realidade e ficção se começam a imiscuir até se tornarem quase indistinguíveis, ao invés, todos os momentos evidenciam-se e desenvolvem-se segundo as regras sempre arbitrárias do pensamento, dando espaço ao espetador para que decifre o que é que está a ser dito nas entrelinhas, enquanto experiencia este verão juntamente com os protagonistas.
E que protagonistas! Roth tem aqui a sua melhor performance desde "Chronic" (2016), providenciando ao seu Tony uma qualidade quase fantasmática, que vai e vem sem que nunca cheguemos a conseguir responder às muitas questões que o seu relacionamento com Chris levanta e, por falar nela, não há como esquecer a intensidade de Vicky Krieps, a meio-caminho entre um entusiasmo esfuziante e uma melancolia lancinante, acompanhamo-lo numa odisseia intima profundamente tocante, sem nunca duvidarmos dos seus sentimentos, mesmo quando não sabemos quais são. Contrassenso? Talvez, mas essa é a beleza deste labiríntico melodrama, ancorado num romantismo antiquado que comove de imediato e apimentado com um sentido de humor inusitado, que aqui e ali aligeira o tom, sem nunca prejudicar a seriedade do todo.
É um filme admirável, capaz de contemplar a passagem do tempo numa incandescência que as palavras não conseguem replicar. É caso para dizer que os filmes de Hansen-Løve continuam a distinguir-se por uma delicadeza extrema, consequência de uma abordagem que privilegia a complexidade do fator humano.
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