"TITANE", DE JULIA DUCOURNAU
"O FILME CHOQUE DO FESTIVAL DE CANNES"
É assim, com letrinhas maiúsculas e tudo, que o trailer (e outros materiais promocionais) de "Titane" publicita a muito aclamada segunda longa-metragem de Julia Ducournau, autora de "Mange" (2012) e "Raw" (2016). De certa forma, ao utilizar uma afirmação tão hiperbólica, os distribuidores internacionais parecem querer posicioná-lo como um sucessor de títulos como "Baise-Moi" (2000), "Trouble Every Day" (2001) ou "Martyrs" (2008), contos transgressivos "determinados a quebrar todos os tabus e a mergulhar em rios de sangue e litros de sémen", como argumentava o crítico da Artforum, James Quandt, quando cunhou o termo "New French Extremity" (traduzido à letra, "Novo Extremismo Francês), de modo a providenciar à crítica um novo enquadramento para falar do novo cinema de terror (e não só) francófono.
É uma estratégia perfeitamente legítima, até porque um filme tão pouco usual como "Titane", pediria sempre uma abordagem diferente do tratamento que habitualmente é providenciado aos títulos que se encaixam na chapa 5 do atual cinema europeu de festivais. No entanto, ao promover tão belo objeto cinematográfico como uma experiência bizarra e desconcertante, secundarizamos o elemento mais impressionante do mesmo: o humanismo que nos surpreende quando menos esperamos, isto, mesmo tendo em conta que a fragilidade dos valores humanistas é um dos seus temas principais. É que, Julia Ducournau conduz-nos pelos caminhos labirínticos de uma história de amor e morte, sem nunca ceder a clichés (narrativos ou estéticos), nem simplificar a complexidade dos assuntos que aqui são abordados.
Convenhamos, é complicado falar sobre "Titane" sem adiantar demasiados detalhes acerca da trama, não só porque é isso que o filme pede, como também porque não há muito a dizer caso não o façamos. Aqui, a sinopse acaba por ser um mero ponto de partida para uma odisseia (ou, talvez, o termo via sacra seja mais adequado) repleta de símbolos, que tanto pode ser intelectualizada até ao tutano, como meramente experienciada pela bomba atordoante que é.
Agathe Rouselle, estreante nas lides da representação que nos providencia aqui a mais impressionante performance do ano, é Alexia. Em criança, depois de um violento acidente rodoviário, tem uma placa de titânio inserida no crânio. Contudo, esse é apenas o início da sua romantização e sexualização de automóveis. O acidente, em si, revela ou precipita algo que "Titane" continuará a explorar e que nada tem a ver com os veículos motorizados: a ligação entre pais e filhos.
Passados vários anos, Alexia é agora uma dançarina erótica. Quando a reencontramos, vemo-la a exibir o seu corpo numa exposição de carros, repleta de showgirls e homens a salivar, prontos a tentar captar a sua atenção. Ela parece caminhar permanentemente na proverbial "corda bamba" da fluidez enquanto simula atracão ora junto a um homem que a interpela, ora junto a uma colega com quem tem um momento de intimidade que envolve um duche e uma madeixa de cabelo presa num piercing. É o prelúdio para outro tipo de fluidez, a moral, dado que estas interações resultam sempre numa série de mortes que colocam Alexia no firmamento dos serial killers cinematográficos com tendências freudianas.
Mas o primeiro momento de choque está no intervalo destes dois encontros, em que Alexia reencontra, num momento onírico e estranhamente romântico, o carro com o qual dançou inicialmente e a ligação entre os dois culmina num encontro sexual. O filme retira o “onírico” ao encontro quando Alexia constata, no dia seguinte, que está grávida, como evidenciado pelo óleo do motor que substitui o sangue humano e voltamos a não estar no reino da verosimilhança, mas as peripécias que se seguem devem permanecer no segredo dos deuses...
É aqui que começamos a sentir as reminiscências de Cronenberg (é impossível não pensar em "Crash"), Ridley Scott (o subvalorizado "O Conselheiro" não demora a vir à cabeça) ou até Miranda July (inicialmente, ninguém diria, mas à medida que a narrativa avança, acabamos por entrar num território sentimentalmente similar a "Kajillionaire"), mas Ducournau é tudo menos uma mera copista, a maneira como cruza a visceralidade do body horror com a emoção genuína do melodrama, esta é, afinal, uma história sobre o surgimento (e a necessidade) do amor, enquadrada num contexto alucinante. À semelhança de "Raw", voltamos a deparar com um filme que tem o seu quê de serpente, na maneira como vai lentamente deixando cair várias peles, até culminar numa conclusão eminentemente intima.
Mais do que os elementos fetiche da violência, do sexo e do metal, é a audácia de Ducournau, a qualidade alienígena de Rouselle, a masculinidade lesionada de Lindon, e o porto seguro que estes encontram um no outro, que dão a qualidade exuberante ao filme. É um filme que nem pede desculpa, nem "com licença" e pouco ou nada se importa de embater contra as sensibilidades ou expetativas da audiência. E sua loucura não é só desassossego, há sentido de humor nas amolgadelas.
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