Durante oito (longos) anos, não tivemos notícias de David Cronenberg. Encontrámo-lo enquanto ator no "Falling", do amigo e companheiro de trabalho Viggo Mortensen, por exemplo, no entanto, tudo indicava (incluindo alguns comentários do próprio) que "Mapas Para as Estrelas" ficaria como o seu último filme como realizador.
Felizmente, esse cenário não se confirmou. Em 2022, Cronenberg reafirma o seu génio com "Crimes do Futuro", um "thriller", se é que lhe podemos aplicar um género pré-existente, tal é a sua insistência em escapar a todas as "gavetas" em que costumamos enfiar os filmes que vemos, que o vê regressar aos tempos de "Videodrome" ou "A Mosca", quando as mutações corporais (não raras vezes sanguinolentas e aterrorizantes) lhe serviam de veículo para falar sobre a condição humana.
Entretanto, Saul vê-se envolvido numa complexa teia de interesses, à medida que vai sendo abordado por diversas personagens, com agendas contrastantes, que reconhecem nele um possível aliado. Dito isto, continua a ser oportuno acrescentar que, uma vez mais, Cronenberg permanece o mais singular dos "cineasta de género". Afinal, mesmo que "Crimes do Futuro" (como, por exemplo, "eXistenZ" ou "Irmãos Inseparáveis" antes dele) englobe elementos que associamos ao terror, à ficção-científica (incluindo a sua vertente "especulativa") e até ao thriller sociopolítico, nunca se entrega completamente aos seus códigos narrativos. Utilizando termos que Cronenberg, quiçá, apreciasse, este é um filme sobre convulsões internas (metaforicamente falando e não só, porque as vísceras são mesmo metidas ao barulho).
Na paisagem desolada de "Crimes" (originalmente, as filmagens decorreriam no Canadá, mas, por motivos financeiros, acabaram por ser movidas para a Grécia, uma mudança não desprovida de consequências, porque a Atenas do filme tem o seu quê de abstrato, tratando-se sempre de um lugar esconso, reminiscente da "interzona" de "O Festim Nu"), não existem heróis, nem vilões, sendo mesmo possível argumentar que todas as personagens são, à sua maneira, figuras trágicas, apanhadas na voragem incessante do tempo e ameaçadas (ou seduzidas) pela obsolescência.
Novamente, o que mais conta é essa noção, de uma só vez filosófica e poética, de que o corpo, sendo o instrumento visível e concreto da nossa condição, existe também como motor (orgânico até...) daquilo que abala as certezas do fator humano. E se, aceitamos essa abordagem corporal ao cinema, é natural que Cronenberg continue a ser um exímio diretor de atores, conduzindo, como um maestro numa orquestra, uma pequena "sinfonia" de performances estarrecedoras, de onde é fundamental destacar o supracitado Mortensen e o surpreendente Scott Speedman, como um revolucionário dilacerado (em muitos sentidos), que reconhece algo seu na figura enigmática e sorumbática de Saul.
No final, ficamos com um plano a preto-e-branco, a trazer à mente uma mítica imagem de um dos títulos fundamentais de Carl Theodor Dreyer, que nos deixa, exatamente, como o seu protagonista, de lágrimas nos olhos, sorriso na cara (a forma, estranhamente, calorosa e otimista como o filme encara a morte, é um balsamo mórbido, capaz de acalmar e acalentar almas) e assoberbados com a beleza daquilo que testemunhamos.
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Texto de Miguel Anjos
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