Quando "A Lei de Teerão" se estreou no mercado português, nos últimos dias de junho, a crítica e os poucos cinéfilos que o nosso país ainda possui não demoraram a proclamá-lo como um dos acontecimentos centrais da temporada. Não era caso para menos. Afinal, não é todos os dias que descobrimos um autor em pleno domínio de todas as ferramentas do seu métier.
Nele, conhecemos uma família onde ninguém tem dinheiro, todos se encontram ou desempregados ou com salários em atraso (o filme começa com imagens de uma greve na fábrica onde trabalha um dos irmãos da personagem titular). Nesse sentido, Roustayi constrói a sua história como uma espécie de corrida contra tudo (contra a lei, contra a própria família, contra as tradições, contra a geopolítica representada pelos tweets de Donald Trump que fazem disparar a inflação em Teerão) e sempre para a frente, à procura de uma estabilidade económica, aparentemente, inatingível (é o clássico "tão perto, mas, tão longe", que, inevitavelmente, leva quem a procura a um abismo qualquer.
Segue-se, portanto, um fascinante e sufocante retrato do quotidiano e do corriqueiro na sociedade iraniana contemporânea (que, segundo o que os boletins informativos nos vão dizendo, se encontra "a ferro e fogo"), com uma dimensão de fábula económica angustiante, inserida numa vasta teia de personagens e ideias, munida de uma complexidade moral fascinante. Roustayi encena mesmo uma multiplicidade de choques, entre os novos (pragmáticos ou apenas necessitados) e os velhos (representados pela figura, simultaneamente, monstruosa e patética do pai, que se marimba para as circunstâncias dos filhos, uma vez que, tudo o que quer é ser nomeado patriarca do clã familiar e receber as honras tradicionalistas que nunca teve ao longo da vida), entre o masculino e o feminino (sendo claro que, a força do primeiro, particularmente, no contexto teocrático da sociedade iraniana, terá sempre poder suficiente para controlar o segundo), no processo, expondo ressentimento feminino para com as características machistas do universo que as aprisiona.
O seu nome é Saeed Roustayi, tem 33 anos, e nesse filme apoderava-se dos códigos do policial taquicardíaco, como idealizado por William Friedkin em "Os Incorruptíveis Contra a Droga", para construir um épico sociopolítico, a paredes meias com o conto moral, com uma intensidade dramática que trazia à mente William Shakespeare.
Uns meses depois, recebemos a sua terceira longa-metragem (a primeira, "Life and a Day", permanece inédita no mercado português), "Os Irmãos de Leila", um melodrama familiar, a meio-caminho entre Francis Ford Coppola ("O Padrinho" vem à mente) e Fiódor Dostoiévski ("Os Irmãos Karamazov", em particular), que nos devolve o poder estarrecedor de um cinema de raiz clássica, que inclui todos os elementos que nos habituámos a associar às narrativas de índole popular, mas, sem os simplismos maniqueístas ou a manipulação emocional que, às vezes, encontramos no chamado "entretenimento de massas". Tratasse-se de um filme falado em inglês e estaríamos a falar, não só de um fortíssimo candidato aos Óscares, como também de um possível sucesso de bilheteiras, pelo menos, nos cinemas que ainda possuem públicos interessados em filmes sem explosões ou efeitos visuais estonteantes.
Nele, conhecemos uma família onde ninguém tem dinheiro, todos se encontram ou desempregados ou com salários em atraso (o filme começa com imagens de uma greve na fábrica onde trabalha um dos irmãos da personagem titular). Nesse sentido, Roustayi constrói a sua história como uma espécie de corrida contra tudo (contra a lei, contra a própria família, contra as tradições, contra a geopolítica representada pelos tweets de Donald Trump que fazem disparar a inflação em Teerão) e sempre para a frente, à procura de uma estabilidade económica, aparentemente, inatingível (é o clássico "tão perto, mas, tão longe", que, inevitavelmente, leva quem a procura a um abismo qualquer.
Neste caso, Leila (Taraneh Alidoosti), benevolente, sensata e inteligente, dedicou toda a sua vida a auxiliar os quatro irmãos, que, não tendo mau coração são, à falta de melhor termo, um bando de imprestáveis, que (sobre)vivem com poucos recursos, na casa do pai (Saeed Poursamimi), de onde nunca conseguiram saíram. Acontece que, esse patriarca, também não é "flor que se cheire" e reconhecendo o quadro dantesco que a rodeia, Leila concebe um plano para garantir um futuro melhor aos irmãos, que passa por investir numa loja de centro comercial, que ainda nem sequer existe (será construída no lugar das casas de banho dos homens, no segundo piso do shopping), infelizmente, nem tudo corre de acordo com os planos, o que acaba por remeter para "A Lei de Teerão", onde a ideia da miséria, um pouco como a tragédia nos textos clássicos, era mais que uma condição desagradável, uma condenação inescapável...
Segue-se, portanto, um fascinante e sufocante retrato do quotidiano e do corriqueiro na sociedade iraniana contemporânea (que, segundo o que os boletins informativos nos vão dizendo, se encontra "a ferro e fogo"), com uma dimensão de fábula económica angustiante, inserida numa vasta teia de personagens e ideias, munida de uma complexidade moral fascinante. Roustayi encena mesmo uma multiplicidade de choques, entre os novos (pragmáticos ou apenas necessitados) e os velhos (representados pela figura, simultaneamente, monstruosa e patética do pai, que se marimba para as circunstâncias dos filhos, uma vez que, tudo o que quer é ser nomeado patriarca do clã familiar e receber as honras tradicionalistas que nunca teve ao longo da vida), entre o masculino e o feminino (sendo claro que, a força do primeiro, particularmente, no contexto teocrático da sociedade iraniana, terá sempre poder suficiente para controlar o segundo), no processo, expondo ressentimento feminino para com as características machistas do universo que as aprisiona.
Nesse contexto, é fundamental destacar a personagem de Leila, que emerge como uma cristalização de tudo isso (e, das muitas questões morais que o filme levantará no seu decorrer), não só graças ao trabalho meticuloso de Roustayi como argumentista e realizador, dando-lhe espessura dramática, dignidade e garra para reclamar o seu lugar num contexto pontuado por muitos mecanismos de repressão, Alidoosti (o leitor reconhecê-la-á devido ao seu trabalho em dois títulos de Asghar Farhadi, "À Procura de Elly" e "O Vendedor") é admirável no papel dessa mulher, estoicamente, resiliente, que se autoencarrega de carregar às costas a vida dos irmãos, independentemente, de ter consciência do quão difícil (quiçá, impossível) será salvá-los do sentimento de danação que corre no sangue daquela família.
À semelhança do que acontece com alguns filmes de Josh e Benny Safdie, por exemplo, "Os Irmãos Leila" assume, então, as características de um thriller em modo de "panela de pressão", atirando-nos para um cenário quotidiano sempre à beira do caos, naturalmente, "controlado" por um argumento de inquestionável precisão. É a confirmação de um grande talento, reafirmando uma capacidade inata de combinar o pessoal e o político, para contar histórias, profundamente, enraizadas num tecido cultural específico, mas, universais nos seus temas, que nos estonteiam e comovem. Claramente, um dos melhores filmes de um ano que se aproxima a passos largos do fim.
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Texto de Miguel Anjos
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