Seja porque a pandemia desencadeou (ou acelarou) violentas mudanças na indústria cinematográfica ou porque o revivalismo se encontra na ordem do dia, os últimos anos viram muitos cineastas a revisitar o seu passado no grande (ou pequeno) ecrã. Kenneth Branagh ("Belfast"), Paolo Sorrentino ("A Mão de Deus") ou James Gray ("Armageddon Time") fizeram-no recentemente e, agora, Steven Spielberg também seguiu esse caminho. Em "Os Fabelmans", ele convoca as suas memórias de infância e adolescência para "compor", simultaneamente, uma comovente celebração do amor primitivo pelo cinema, visto e habitado como um intemporal país das maravilhas, e um contundente melodrama familiar, que ousa ressuscitar um dos momentos mais dolorosos da vida do cineasta, o divórcio dos pais (os seus fãs mais ferrenhos devem recordar-se que esse rompimento conjugal já tinha estado na origem de "E.T.").
O ano é 1952, quando, numa noite invernal, Burt (Paul Dano) e Mitzi Fabelman (Michelle Williams) levam o filho, Sammy (o "duplo" de Spielberg, interpretado por Mateo Zoryan em criança e Gabriel LaBelle em adolescente), ao cinema pela primeira vez. Para espanto de ambos, o rapazinho não só adora a experiência, como desenvolve uma afinidade intensa pela sétima arte, que o leva a convencer os pais a comprar-lhe uma câmara Super 8. Com o passar dos anos, Sammy torna-se no documentarista das convulsões interiores da família e no realizador de produções cinematográficas amadoras, protagonizadas pelas irmãs e amigos. Aos 16 anos, ele é, simultaneamente, o principal observador e arquivista da história dos Fabelman.
Importa não adiantar muitos detalhes acerca dos acontecimentos retratados em "Os Fabelmans", permitindo ao leitor que descubra as surpresas que Spielberg tem na manga (incluindo um cameo inspiradíssimo de um ilustre contemporâneo seu...), nem que seja só, porque as muitas cenas familiares que vamos testemunhando, têm o elemento lúdico de auxiliar os atentos conhecedores da obra de Spielberg a identificar o ponto de origem deste ou daquele momento no título x ou y, mas, principalmente, porque vale a pena testemunhar a maneira como ele encena esta odisseia paradoxal, captando o período exato em que chocou, simultaneamente, com o cinema, enquanto "fábrica dos sonhos", plena de encanto e imaginação, e com a dureza da realidade, em toda a sua inevitável complexidade.
Nesse processo, é fundamental a colaboração com o dramaturgo Tony Kushner (lembremos, já tinham colaborado juntos em "Lincoln" ou "West Side Story", por exemplo), cuja escrita precisa e eloquente auxilia Spielberg a interrogar as suas memórias, no entanto, não há como secundarizar a contribuição decisiva dos atores, e se, Paul Dano e Michelle Williams têm concentrado em si a maior parte da atenção da imprensa, parece-nos imperativo destacar dois outros nomes, o "novato" Gabriel LaBelle, que deslumbra com uma performance de inquestionável intensidade como o alter ego de Spielberg, e o veterano, veteraníssimo Judd Hirsch, como o Tio Boris, uma personagem de presença "maior que a vida" que, num mero par de cenas, surpreende e comove.
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