Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "OSSOS E TUDO"


Luca Guadagnino continua a traçar um caminho deveras singular, com uma filmografia tremendamente heterogénea, onde se cruzam influências, referências e géneros, sempre com um inatacável sentido de coerência ética, estética e simbólica. Em "Ossos e Tudo", encontramo-lo, novamente, a encenar uma fábula sobre indivíduos marginalizados, neste caso especifico, os diversos membros de uma comunidade de canibais, cujas vivências vão sendo filtradas pelo olhar de uma jovem que, aos 16 anos, começa a experienciar esses anseios "carnais", por assim dizer.

Inevitavelmente, muitos se têm sentido tentados a comparar "Ossos e Tudo" a um dos romances sanguinolentos seminais do século XXI, o "Deixa-me Entrar", de Thomas Alfredson, não só porque ambos providenciam espessura dramática a personagens, tendencialmente, reduzidas a estereótipos vilanescos, desprovidos de quaisquer resquícios de humanidade. No entanto, há, pelo menos, um pormenor que diferenciador entre os dois filmes que é tudo menos secundário. Afinal, se Alfredson trabalhava os vampiros, ciente de que a literatura se tinha encarregado de os estabelecer enquanto heróis românticos ou, no mínimo, figuras trágicas no ideário popular, então, cabe a Guadagnino humanizar os canibais aos olhos do público, nesse sentido, fará mais sentido aproximar "Ossos e Tudo" de outros dois títulos sobre "comedores", como lhes chamam no filme, o "Somos Lo Que Hay", de Jorge Michel Grau, e o "Grave", de Julia Docournau.

À semelhança dos filmes supracitados, "Ossos e Tudo" desenrola-se numa franja marginal da nossa sociedade (ou, pelo menos, de uma sociedade indistinguível da nossa), povoada por vítimas de uma hereditariedade "amaldiçoada". Aqui, o canibalismo é, simultaneamente, um vício e uma doença. Por um lado, as personagens são, instintivamente, compelidas a consumir carne humana (têm até capacidades que os auxiliam a escolher as suas vítimas, como um faro apuradíssimo que lhes permite distinguir outros "comedores" dos demais), com frequência, por outro, senão o fizeram, enfraquecem e morrem.



É o caso de Maren (Taylor Russell, revelada no "Waves", de Trey Edward Shultz), abandonada pelo pai (André Holland), incapaz de compreender as necessidades especiais da filha (curiosamente, a estranheza com que encara os seus apetites, não o impede de empatizar com ela, ainda que, em última instância, isso não seja suficiente para o levar a permanecer lado dela), que, pontualmente, se envolve em escândalos sanguinolentos que o forçam a encobrir algum tipo de crime.

Sozinha num mundo que desconhece e aprisionada a um corpo que não compreende inteiramente, Maren resolve fazer-se à estrada em busca da mãe que nunca conheceu, na esperança de que ela possa, eventualmente, ajudá-la a entender mais acerca da sua condição. No caminho, cruza-se com outros como ela, em particular, com dois homens que a aproximam de caminhos diferentes, Sully (Mark Rylance), um canibal envelhecido, com um temperamento muito particular, que encapsula em si o zénite da perversão, e Lee (Timothée Chalamet), o anti-herói errante por quem se apaixonará perdidamente...


Simbolicamente, "Ossos e Tudo" é aberto o suficiente para poder ser alvo de múltiplas leituras. Isto é, se os canibais podem representar uma qualquer comunidade marginalizada, que a sociedade condenou, por crueldade ou indiferença, a uma vida "invisível" (o argumentista, David Kajganich, descobriu a sua homossexualidade na sua adolescência, na mesma América rural e, tipicamente, conservadora em que os protagonistas se movem, um factor que, certamente, será tudo menos alheio ao seu processo criativo), também acabam por remeter para o quotidiano convulsivo de quem se vê sob o jugo de um vício destrutivo, como os alcoólicos, toxicodependentes ou ludopatas, também eles hipotecam a sua integridade física, psicológica e moral para alimentar um impulso corrosivo, que os persegue dia-e-noite como um fantasma que ninguém consegue exorcizar.

Contudo, o foco de Guadagnino permanence, como sempre, na criação de sensações, derivadas de um trabalho estético obsessivo. Dos cenários, perpetuamente, sujos e pegajosos, à omnipresença dos mais variados fluidos humanos (há muito que um filme não englobava tanta saliva e muco), passando pela aparência descabelada dos seus intérpretes, "Ossos e Tudo" é um filme rico, riquíssimo, em texturas, que, a espaços, nos leva a acreditar que se estendermos as mãos e abrirmos as narinas, conseguiríamos tocar e farejar todos os elementos que constroem o universo em que as personagens se movem.

"Ver" um filme como este torna-se, portanto, numa estimulante experiência sensorial, que nos coloca nos sapatos de Maren e nos permite entrar em contacto com a realidade por uma perspetiva que, sendo ancorada nos códigos do cinema de género (nem faltam os contornos sobrenaturais com que Guadagnino havia brincado em "Suspiria"), tem inúmeros pontos de contacto com o nosso, está é, afinal, um conto sobre a intensidade, por vezes, destruidora (e, consequentemente, trágica) do desejo, cristalizado, sublimado, quando é colocado ao serviço do amor, independentemente, da sua natureza poder vir a provar-se efémera.


Guadagnino tende a ser aproximado, compreensivelmente, de outro sensualista transalpino, Bernardo Bertolucci, no entanto, "Ossos e Tudo", quando colocado ao lado do seu antecessor, "Suspiria", posiciona-o na descendência de autores como Rainer Werner FassbinderJohn Waters ou Lars Von Trier, estetas que encontram a beleza, a humanidade no obsceno, no abjeto, e, no processo, nos abrem os olhos para o inferno terreno, ajudando-nos a ascender aos céus (do cinema enquanto experiência total, pelo menos), por excesso do pecado.

Faz sentido, portanto, que, à semelhança dos génios supracitados, também Guadagnino se faça acompanhar de uma fiel trupe de atores, de facto, à exceção de Russell, estarrecedora na maneira como ilustra a corrupção, inevitável e irreversível, da inocência de Maren, praticamente, todos os membros do elenco, deixaram uma marca em títulos anteriores seus, com destaque inevitável para Timothée Chalamet, com aquele charme mesmérico, que o coloca a meio-caminho entre Alain Delon e Louis Garrel, e Michael Stulhbarg, completamente irreconhecível (e arrepiante) numa única cena.

"Ossos e Tudo" é um magnum opus ousado, tocante e punk, de uma das vozes mais idiossincráticas do panorama cinematográfico contemporâneo.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)