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CRÍTICA - "OS DEMÓNIOS DO MEU AVÔ"


O ano de 1923 marca, simbolicamente, o início da história da animação portuguesa, com a estreia de "O Pesadelo de António Maria", de Joaquim Guerreiro, primeiro no Cine Teatro Éden, em Lisboa, a 25 de janeiro, pouco depois, a 20 de fevereiro, no Águia d'Ouro, no Porto.

Consequentemente, em 2023, comemoramos o centenário da animação portuguesa. Por coincidência, a data coincide com um momento pujante para quem faz esse tipo de cinema por cá. "Ice Merchants", de João Gonzalez, tornou-se na primeira produção lusitana a conquistar uma nomeação para os Óscares no início de 2023 e, agora, chega finalmente (!) às salas, "Os Demónios do Meu Avô", de Nuno Beato, depois de um longuíssimo (e prestigiante) percurso no circuito internacional de festivais.

Trata-se da primeira incursão do cinema português na animação stop motion (isto é, animação de volumes, fotograma a fotograma, como o faz, a título de exemplo, a britânica Aardman nas aventuras da Ovelha Choné ou do duo Wallace & Gromit), utilizada como ferramenta para encenar um cruzamento tremendamente inusitado de comédia de usos e costumes com melodrama de recorte intimista.


Rosa (Victoria Guerra) é uma designer extremamente bem-sucedida, que colocou tudo de lado para se dedicar à sua carreira, incluindo Marcelino (António Durães), o avô de quem, outrora, foi muito próxima. Um dia, ele falece, deixando-lhe tudo o que tem, nomeadamente, um conjunto de terrenos no Vale do Sarronco, uma aldeia (fictícia) no interior transmontano.

Rosa, sentindo-se culpada por ter votado Marcelino ao esquecimento, coloca a sua vida em Lisboa em pausa e regressa ao Sarronco, onde encontra terras praticamente abandonadas, uma casa dilapidada e, acima de tudo, as memórias de um passado que lhe parece impossivelmente distante.

Seguem-se múltiplas linhas narrativas. Por um lado, Rosa enceta numa odisseia interior, restabelecendo a sua ligação ao avô, com base naquilo que ele deixou para trás (da propriedade a cair de podre aos bonequinhos de barro que ele moldava com tanto afeto e atenção, tudo aquilo "conta uma história"), que, no limite, a leva a reavaliar as escolhas que fez. Por outro, terá de se envolver com os locais, que, vem ela a descobrir, não morriam de amores por Marcelino, reencontrando um velho amigo e fazendo outros novos.


É uma história simples, com a qual nos podemos facilmente relacionar, no entanto, a forma como Beato a encena é tudo menos óbvia. Há alusões ao imaginário transmontano, à linguagem do cinema de terror e à literatura (a forma como o Vale do Sarronco "transporta" Rosa para o seu passado tem algo de Proust), tudo, no contexto de um admirável e inquestionavelmente obsessivo trabalho de animação, que resulta num ambiente táctil que é também imediatamente reconhecível. O Vale do Sarronco não existe, foi inventado pelos argumentistas e, contudo, qualquer pessoa que já tenha andado pelo interior de Portugal (e não só) identificá-lo-á instantaneamente, tão credível é aquele ambiente rural.

Esse nível de verossimilhança permite também a introdução do humor, colocando Rosa, alguém que esqueceu as suas raízes e se "rebatizou" citadina (e, principalmente, o seu amigo, João, que a lá vai visitar e não tem uma costela rural no corpo) numa multiplicidade de situações cómicas que expõem as diferenças campo/cidade, com uma inteligência, uma empatia, que garante que "Os Demónios do Meu Avô" nunca cai em facilitismos sobranceiros.

No entanto, o "gancho" do filme é o olhar sensível e comovente sobre Rosa e Marcelino, duas personagens que, paradoxalmente, tudo separa e tudo une. Ela abandonou quem a amava para cultivar uma existência vazia, orientada em torno da gratificação social que o dinheiro e o estatuto podem, eventualmente, trazer-lhe, enquanto ele se isolou do mundo, escolhendo nunca confiar em ninguém, depois do falecimento da mulher. Percursos distintos, vividos em universos irreconciliavelmente opostos que os levaram à mesmíssima condição, a de uma solidão constante e aparentemente inescapável.

Depois de um período pandémico, onde nos venderam a mentira de que podíamos efetivamente viver sozinhos, "Os Demónios do Meu Avô" adquire ainda mais poder, permitindo-nos sorrir e até lacrimejar, à medida que desconstrói as ilusões que levarão os seus protagonistas a selar-se nos seus casulos.

É um filme belo, belíssimo, em todos os sentidos, com um par de momentos absolutamente arrebatadores (especialmente um, que é o equivalente deste filme de Beato à passagem do preto e branco para a cor em "O Feiticeiro de Oz", ou a "extensão do ecrã" em "Mamã"), que nos diz muito sobre quem fomos, somos e podemos ser.

Afinal, escusado será dizê-lo, mas o melhor cinema é sempre aquele que se lembra que somos todos humanos, demasiado humanos...

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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