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CRÍTICA - "THE QUIET GIRL - A MENINA SILENCIOSA"


Quando se anunciou a programação da 72ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, ninguém reparou em "The Quiet Girl - A Menina Silenciosa", primeira longa-metragem de Colm Bairéad. Haviam nomes mais sonantes no alinhamento (Claire Denis, Paolo Taviani, Hong Sang-Soo, François Ozon, Dario Argento, Quentin Dupieux, etc.) e o seu posicionamento numa das secções menos mediáticas do certame (a Generation) não ajudou.

No entanto, algo surpreendente aconteceu e o filme de Bairéad tornou-se num dos mais espantosos casos de passa-palavra do século XXI. Sem um único nome reconhecível na ficha técnica, "The Quiet Girl" acabou por fazer um percurso tremendamente impressionante, que culminou numa nomeação para o Óscar de Melhor Filme Internacional, uma primeira vez para uma produção irlandesa, possibilitada pela decisão de Bairéad de colocar os atores a utilizar quase exclusivamente o dialeto gaélico local, consequentemente, fazendo dele "um filme de língua estrangeira".


Entende-se o porquê de tanto burburinho, quanto mais não seja, porque na sua infinita simplicidade (não confundir com simplismo) "The Quiet Girl" tem a virtude de nos reintroduzir a um cinema de raiz profundamente humanista, que coloca tudo de lado para se apegar às personagens, transmitindo-nos os seus sentimentos com verosimilhança e empatia, entendendo que nem sempre é possível verbalizar tudo aquilo que gostaríamos de comunicar.

Trata-se, portanto, de um filme feito à medida da sua protagonista, Cáit (Catherine Clinch), uma menina proveniente de um ambiente carenciado, que vive numa casa decadente, com as muitas irmãs e os progenitores carrancudos e agressivos. Imediatamente, Bairéad deixa clara a tristeza em que vive Cáit, sem necessitar de muito. Um par de sequências bastam para compreendermos o sentimento de inescapável tristeza que permeia o quotidiano daquela menina.

Um dia, os pais enviam-na para casa de uns parentes afastados da mãe, onde passará o verão. É recebida, ou melhor, acolhida por Eibhlín (Carrie Crowley) e Seán (Andrew Bennett), um casal com um passado particularmente doloroso. Durante os meses que se seguem, Eibhlín, Seán e Cáit encontram, na presença uns dos outros, uma maneira de forjar um caminho em frente.


Narrativamente, pouca (pouquíssima) coisa acontece no decorrer dos económicos 94 minutos que compõem o filme de Bairéad, mas, o cineasta (que também escreveu o argumento, tendo como base na novela "Foster", da sua conterrânea Claire Keegan) entende que o que se sente costuma importar mais que aquilo que se diz, providenciando-nos uma pequena pérola de humanismo discreto, onde as paisagens verdejantes (e solarengas) da Irlanda rural vão dar lugar um melodrama tremendamente sensível, que comove sem dificuldades, sem necessitar de recorrer à manipulação emocional.

Em parte, esse portento deve-se também ao trabalho do trio de atores central, Clinch, de 14 anos (tinha 12 durante as filmagens), é uma revelação absoluta, apresentando uma composição de tremenda complexidade e maturidade, que serve de âncora a todo o filme, enquanto Carrie Crowley é assoberbante na maneira visceral como habita aquela mulher, visitada por uma melancolia incessante, que encontra na menina que sabe não ser sua, uma maneira definitiva de se reconciliar com os fantasmas do passado e, por favor, não esqueçamos o insuperável Bennett, também ele silencioso e estoico, de coração aparentemente entorpecido, que, ao longo do filme, se vai permitindo alguma felicidade, alguma doçura.

"The Quiet Girl - A Menina Silenciosa" é, apesar do carimbo dos Óscares no poster, um filme pequenino, pequeníssimo, sem qualquer tipo de pretensões, nem de ordem espetacular, nem intelectual. Encontrá-lo no coração do verão é atípico, mas, que bem que sabe. Um verdadeiro bálsamo fílmico.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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