Como convocar (quiçá, "evocar" fosse um termo mais adequado, dada a sua conotação com o reino do espiritismo) Cesária Évora? Afinal, "A Diva dos Pés Descalços" encerra em si uma importância simbólica (cultural, social e, consequentemente, política) que importa sublinhar, preservar e imortalizar.
Felizmente, Ana Sofia Fonseca, oriunda do meio jornalístico, entendeu isso e escolheu conceber um documentário que percebe que, para contar a história de Cesária, é inevitável cruzar o pessoal e o político, pintando o retrato de alguém que, inadvertidamente, se ergueu (ou foi erguida) como a representante de um povo, historicamente, desprovido de uma voz.
Em "Cesária Évora", assistimos, portanto, a um trabalho modelar de conjugação de imagens de arquivo e entrevistas, no qual, para lá do talento e genuinidade da cantora cabo-verdiana, ficam também vincados a generosidade, humildade extrema e espírito secamente pragmático que a caracterizavam.
O resultado é um pequeno fresco histórico, tão interessante e acessível para os fãs como para os iniciantes (quem procura uma introdução ao universo de Cesária, só muito dificilmente encontrará um ponto de partida mais adequado), retratando, simultaneamente, os episódios mais violentos da sua existência (as depressões cíclicas, o tempo passado num austero convento, onde se acolhiam órfãos, a discriminação sofrida às mãos da família de uma amiga de raça branca, etc.), sem esquecer os momentos caricatos que a vida de cantora lhe providenciou (fica a promessa, o encontro com o cubano Compay Segundo levá-lo-á ao êxtase do riso).
Acima de tudo, dir-se-ia que a prioridade de Ana Sofia Fonseca é não a música, mas, o caracter irredutível da mulher, paradoxalmente, isso leva-nos a ouvir as suas canções de forma mais intensa e fascinada, plenamente enredados no contexto social que lhes deu origem e as tornou vitais para tantos por todo o mundo.
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Texto de Miguel Anjos
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