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CRÍTICA - "GOLIAS"


Onde anda o cinema político? Escusado será dizer que, qualquer tentativa de resposta terá, forçosamente, de passar por uma outra pergunta, nomeadamente, o que entendemos nós por "cinema político"? A resposta é simples, filmes capazes de abordarem os temas que marcam o quotidiano sociopolítico, com inteligência e maturidade suficientes para não reduzirem as causas e temas que nos dividem a meros soundbites.

Acontece que, o realizador francófono Frédéric Tellier, que ficámos a conhecer por intermédio do melodrama "Vida por Vida", reconhece que nunca pode ser a gravidade dos assuntos evocados a garantir a qualidade de um filme, mas sim, o tratamento dos mesmos. Portanto, em "Golias", a sua terceira longa-metragem, foca-se em construir uma narrativa clássica (a referência à mitologia grega no título, denuncia, imediatamente, essa abordagem), que assume múltiplas perspetivas, para nos providenciar um retrato, necessariamente, complexo de uma realidade em tudo atual, que é também um estupendo thriller à moda antiga.


O "Golias" titular é uma empresa de produtos químicos para a agricultura, a Phytosanis, entretanto, quem desafia os seus poderes é um "David" coletivo, constituído por uma comunidade de pessoas direta ou indiretamente afetadas pela tetrazina, "um pesticida inofensivo, de acordo com o seu fabricante, que a OMS classificou como cancerígena", parafraseando uma das personagens.

A atenção do argumento divide-se, principalmente, entre Patrick (Gilles Lellouche), um advogado especializado em direito ambiental que, dá por si, enredado nas malhas de um sistema na bancarrota moral, France (Emmanuelle Bercot), uma professora de educação física que se converteu ao ativismo, depois do marido contrair um cancro devido à exposição prolongada à tetrazina, e Mathias (Pierre Niney), um lobista brilhante, encarregado de defender os interesses da Phytosanis, der por onde der...


Patrick, France e Mathias, à semelhança da Phytosanis e da tetrazina, são puramente fictícios, porém, "Golias" não pretende ser neutro em relação a acontecimentos recentes na sociedade francesa, quer na esfera da justiça, quer na discussão pública sobre os prós e contras dos pesticidas. Num texto de abertura, o filme esclarece isso mesmo, já que, depois de assinalar os seus elementos fictícios, se escreve: "Qualquer semelhança com acontecimentos reais, pessoas mortas ou vivas não é fortuita, nem involuntária."

Seguindo essa linha de pensamento, Tellier encena "Golias" como uma desconstrução metódica dos labirintos de poder, onde as figuras titulares utilizam mecanismos apenas seus, para manter o controlo que exercem sobre os outros e silenciar quaisquer possíveis detratores, nesse sentido, é, simultaneamente, elucidativo, fascinante e perturbador observar a odisseia de Mathias, o tal líder do lobby da Phytosanis, cuja conduta combinando uma sinistra habilidade negocial com o cinismo face ao sofrimento dos outros, no entanto, Tellier tem o bom-senso de nunca o demonizar por completo, esforçando-se até para retratar a sua vida familiar, dir-se-ia, idílica. Mathias simboliza uma engrenagem de um sistema que "corrompido pelos vencedores, para os vencedores" (citando outro "vilão" demasiado humano, o empresário de Michael Shannon em "99 Casas"), mas, não é um ser malévolo de outra dimensão, e, de alguma forma, a proximidade entre o nosso quotidiano (as nossas relações laborais, amorosas, familiares, etc.) e as suas (e dos seus colegas de trabalho, como o interpretado por Laurent Stocker), apenas acentuam o quão arrepiantes são as suas ações, correta estava Hannah Arendt, quando falava na "banalidade do mal".

Niney dá-lhe vida admiravelmente, providenciando um adversário muito digno a um tremendo Lellouche (possivelmente, a sua melhor composição desde "A Rede do Crime"), incorporando nuances deveras inesperadas, numa personagem que podia muito bem ter caído no cliché do herói estoico, e à imensa Emmanuelle Bercot, cujo desespero vai crescendo até se tornar insuportável, para ela e para nós.

Quem procura um "sermão" político ou um desfile de hashtags, repleto de simplismos e facilitismos, não o encontrará aqui, mas, todos os outros fazem muito bem em dar uma chance a um filme que é mesmo dos nossos tempos...

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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