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CRÍTICA - "CRÓNICAS DE VESPER"


Num futuro não muito distante, geneticistas de todo o mundo juntaram-se para encontrar uma forma de contornar as alterações climáticas gravíssimas que ameaçavam tornar inviável a vida na Terra. No entanto, quando diversos vírus e organismos geneticamente modificados escaparam para o meio ambiente, desequilibraram ainda mais os ecossistemas terrestres.

Nesse quadro dantesco, a "civilização" adaptou-se como pôde, os habitantes abastados criaram cidades isoladas (as chamadas "cidadelas"), enquanto os mais desfavorecidos foram abandonados em condições atrozes, rodeados de elementos naturais transmutados (árvores que respiram, plantas carnívoras, paredes cobertas de dentes, etc.). Entre os proscritos, encontramos Vesper (Raffiella Chapman), de 13 anos, que (sobre)vive numa casa decadente com o pai acamado (Richard Brake), procurando uma maneira de conseguir aceder às inalcançáveis cidadelas...


A meio caminho entre "Aniquilação" e "Dune", Kristina Buožytė e Bruno Samper, coautores de "Vanishing Waves" e do segmento "K Is For Knell" na antologia "ABCs of Death 2", compõem uma comovente e inventiva fábula futurista, ancorada numa imaginação fervilhante, que nos surpreende, fascina e arrepia, em partes iguais, trazida à vida por um trabalho absolutamente estarrecedor de efeitos visuais, que cedo nos envolve num mundo, no mínimo, "caricato". Ninguém adivinharia que, no campeonato do espetáculo visual, uma coprodução entre França, Bélgica e Lituânia (terra natal de Buožytė, onde decorreram as filmagens de "Crónicas de Vesper"), de baixo orçamento, colocaria todo o catálogo dos estúdios Marvel para 2022 a um canto, mas, aqui estamos.

Que Buožytė e Samper nos consigam arrebatar, sem nunca sentirem a necessidade de incluir as sequências de ação mastodônticas de que os blockbusters norte-americanos tendem a abusar, só faz dele mais impressionante. No entanto, "Crónicas de Vesper" não é somente um assombro estético, uma vez que, os cineastas, que escreveram o argumento com Brian Clark, se lembram de centrar a narrativa num núcleo dramático carregado de pathos, que a pequena Raffiella Chapman carrega às costas como uma verdadeira veterana.

É, escusado será dizê-lo, um pequeno filme, sem acesso ao tipo de campanhas de marketing que apenas Hollywood tende a conseguir pagar, mas, vale muito a pena descobri-lo.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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