Em meados dos anos 60, Pier Paolo Pasolini embarcou numa viagem por Itália fora para filmar um inquérito aos seus compatriotas, especialmente, aos das classes populares e rurais, sobre uma variedade de temas, para uma espécie de fresco sociológico. O autor de "O Evangelho Segundo São Mateus" e "Decameron" não foi o único cineasta transalpino a ter uma ideia desse tipo à época, contudo, o filme que resultou desse trabalho, "Comícios de Amor", é hoje o mais famoso.
No princípio de 2020, Pietro Marcello ("Martin Eden"), Francesco Munzi ("Anime Nere"), Alice Rohrwacher ("Feliz como Lázaro") decidiram dar início a um empreendimento similar: "Futura, O Que Está Por Vir", um documentário em que trio atravessa Itália, do continente para as ilhas, da cidade para o campo, entrevistando adolescentes italianos, oriundos de diversas classes e contextos sociais, elaboradas na sua maioria em pleno período pandémico, onde os realizadores auscultam a forma como a contemporaneidade, ora condiciona, ora estimula, o pensamento que os jovens têm de si mesmos e sobre o seu papel na sociedade.
Pese embora as já conhecidas diferenças de tecido social e cultural entre o Norte e a Itália meridional, salta à vista a uniformidade de tom no discurso destes jovens, um desapontamento existencial e material, "um encolher de ombros" em relação ao futuro que, não sendo niilista, também não acalenta esperança. Este sentimento de desânimo parece coincidir e, quiçá, ser acentuado por um certo anátema de desilusão que carregam quando se confrontam com os seus ascendentes, em relação a quem sentem, ou foram levados a sentir, que partiram de uma posição de privilégio.
"Futura", possui breves apontamentos narrados por Alice Rohrwacher, particularmente, quando ressalva a importância da pandemia da COVID-19 no quotidiano dos seus sujeitos (um "fenómeno" impossível de antecipar, que interrompeu as filmagens e mudou radicalmente o rumo do filme), mas, são exceções. Afinal, a força motriz deste retrato geracional reside na maneira como consegue providenciar uma voz a estas pessoas, dando-lhes um fórum para expor às suas expectativas e ansiedades, sem nunca tentar formular nenhum tipo de comentário pré-fabricado acerca daquilo que nos é mostrado. Esse trabalho fica a cargo do espetador, caso ele esteja interessado em analisar o que viu.
E, de facto, em "Futura", não faltam pontos de interesse aos quais nos podemos agarrar, da disparidades entre "ricos" e "pobres" (os primeiros querem "uma vida melhor", os segundos apenas sonham com "uma vida"), sem que o filme nunca sinta a necessidade explicitar em que categoria se encaixa quem, ao retrato dos "migrantes" ou filhos de migrantes (compreende-se que há cada vez mais pessoas de origem balcânica, africana ou do médio oriente entre a população de Itália), passando pelas observações pouco abonatórias dos jovens sobre um país que, na sua ótica, se "marimba" para eles.
Encontramo-nos, portanto, perante um fascinante mosaico de expectativas e ansiedades, cujo efeito cumulativo chega mesmo a ser surpreendente (é possível que se emocione mais do que espera), que toca em, praticamente, todos os "grandes temas" da atualidade (a formação dos cidadãos, a empregabilidade, a pressão que as redes sociais passaram a exercer nos mecanismos de construção identitários, etc.), sem julgamentos morais, nem simplismos condescendentes. É, inevitavelmente, aquilo a que a internet tende a referir-se como "um produto do seu tempo" (como se fosse possível escapar a essa condição), no entanto, arriscamo-nos a dizer que esta cápsula das novas (e velhas, dado que algumas das preocupações destes jovens são mesmo "milenares") ansiedades italianas é, simultaneamente, um belíssimo pedaço de cinema e um admirável trabalho sociológico.
Resumindo? Ide vê-lo e, de preferência, o mais rapidamente possível...
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Texto de Miguel Anjos
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