Em 1974, o romancista Gregory McDonald assinou "Fletch", um policial de recorte clássico, que nos introduzia a Irwin M. Fletcher, um ex-jornalista convertido em detetive privado. Com o passar do tempo, Fletcher (ou Fletch) tornou-se num pequeno ícone do género, protagonizando múltiplas sequelas. Aliás, Hollywood não ignorou o fenómeno, dando mesmo luz verde a duas adaptações da prosa de McDonald, com Chevy Chase no papel titular.
No entanto, Fletch pareceu cair no esquecimento com o passar do tempo, até que Jon Hamm, conhecido, principalmente, por ter dado corpo a Don Draper em "Mad Men", decidiu utilizar o crédito que esse triunfo televisivo lhe providenciou para produzir uma nova aventura para a personagem. O resultado desse labor é "Confessa, Fletch", com realização a cargo de Gregg Mottola, autor de uma das melhores comédias norte-americanas da era moderna, "Superbaldas".
Em "Confessa, Fletch", o homónimo herói relutante (Hamm) vê-se no centro de uma intrincada teia de crimes, quando Angela (Lorenza Izzo), a filha de um multimilionário italiano, por sinal sua namorada, o incumbe de descobrir quem roubou a coleção de arte do pai, que inclui, por exemplo, um Picasso avaliado em 20 milhões de dólares... Contudo, a situação complica-se quando alguém incrimina Fletch pelo homicídio brutal e misterioso de uma mulher.
Mottola tem a inteligência de construir todo o filme à imagem do seu protagonista, simultaneamente, charmoso e malandro, capaz das mais impressionantes demonstrações de brilhantismo e de cometer trapalhadas indiscritivelmente ridículas. Fletch é, portanto, uma personagem bizarra, que tanto lembra o apogeu do cinema noir, como a comédia burlesca que programas como o "Saturday Night Live", de Lorne Michaels, vieram popularizar. Hamm compreende essas fascinantes nuances e revela-se à altura delas, compondo um Fletcher carismático, mordaz e impossível de antipatizar, que nos convence desde os princípio.
Mas, Hamm não se encontra sozinho, aliás, é mesmo espantosa a proliferação de personagens caricatas que o argumento vai apresentar, do polícia vivido por Roy Wood Jr. (que todos comparam a uma lesma, dada à lentidão com que resolve todos os casos que lhe vão parar às mãos) ao jornalista deliciosamente carrancudo de John Slattery (outro veterano do universo de "Mad Men", aqui a reencontrar-se com Hamm pela primeira vez), é mesmo um daqueles raros casos de um filme que investe tanto nos secundários como no protagonista, garantindo que permanecemos sempre entretidos, independentemente, de quem esteja em cena.
Posto isto, o que nos rouba o coração é, precisamente, o argumento, escrito por Mottola e Zev Borow, que desconstrói comicamente os clichés das aventuras de detetives antiquadas, com um sentido de humor mordaz, que coloca um sorriso na cara de qualquer um, ao mesmo tempo, que lhes presta uma homenagem cândida e apaixonada. "Confessa, Fletch", parece ter surgido do nada (a Paramount anunciou o seu lançamento no mercado português com apenas três semanas de antecedência e a campanha publicitária foi, no mínimo, anémica), mas, vá pelo The Corner, não merece ser ignorado...
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Texto de Miguel Anjos
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