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Crítica: "Detroit", de Kathryn Bigelow



Kathryn Bigelow e Mark Boal mudaram-se mutuamente. Ela começou unicamente como uma encenadora de requintados espetáculos de ação (lembremos o clássico “Point Break: Ruptura Explosiva”). Ele estabeleceu-se como um jornalista de investigação. No entanto, quando se conheceram, a situação alterou-se permanentemente. Boal transformou-se num argumentista e, Bigelow passou a emprestar o seu olhar quase documental aos seus belos escritos. Passados 9 nove anos, saíram dessa parceria três longas-metragens, que parecem mesmo formar uma trilogia inesperada, confrontando a América com a sua história e mais importante que isso, com os momentos menos positivos da mesma. Em “Detroit”, fala-se nos motins que abalaram a cidade titular em 1967, que atingiram um dos seus momentos mais sangrentos no incidente do Motel Algiers, em que a ação de uma polícia francamente racista, levou à morte de três jovens afro-americanos, na sequência de uma violentíssima detenção. Incidente esse, que ocupa mesmo o bloco central do filme (cerca de 40 minutos, de uma duração que se aproxima das duas horas e meia) e, que nos é apresentada com um realismo genuinamente chocante, que Bigelow nunca reduz às mais comuns componentes simbolistas. Assim, resultando num belíssimo e contundente exemplar de algum do mais estonteante cinema político, que se faz nos dias que correm. Aliás, podemos mesmo dizer, que ao regressar aos anos 60, a cineasta conseguiu expor questões de desigualdade e nada subtis manifestações de racismo, profundamente enraízas no tecido social americano, tão atuais, que na volta “Detroit” é mesmo um filme dos nossos dias, que merece um sucesso bem maior, do que aquele que conseguiu aquando da sua estreia nos EUA.


Realização: Kathryn Bigelow
Argumento: Mark Boal
Género: Drama
Duração: 143 minutos

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